
DOUTRINA
Um caso delicioso
Um dos meus que trabalha na Baixa, morre por me ver no Porto; e eu gostaria que ele morresse muitas vezes, mas não posso. De manhã, saímos ambos da Rua D. João IV e até aos Congregados, onde fico a celebrar, são novidades e anedotas e perguntas e «olhe pràqui» e «veja acolá», até nos separarmos. Passou aqui as suas férias em Setembro e levou três quilos de carne limpa! Já lhe disse para indagar dos mestres, no Porto, quantos quilos de boroa deve ele ter rilhado para chegar ós três quilos de carne. Deve ter sido muita coisa porquanto, sempre que eu me encontrava com ele, via-o ocupado...!
Como ele entra para o escritório às 8,30 e sabia que antes daquela hora eu devia estar em S. Bento, pro comboio, apareceu ontem na estação. «Uma gare.» Passei-lhe para as mãos o porta-moedas. Comprou a gare. Entrámos os dois. O apaixonado ripou os embrulhos das minhas mãos pecadoras e ambos fomos colocar na carruagem. «Aqui é que é!» Era primeira. É o que reza o passe que me deram. «A burro dado...»
Uma vez instaladas as coisas, saímos e fomos ó chocolate, ó quiosque. Passei-lhe de novo o porta-moedas. «Eu ando», disse. E andou com a despesa dos dois paus dele. Veio à baila, enquanto trincávamos, um ponto em que ele muito gosta de tocar: uma borla a Coimbra no nosso carro. Ora isto não é comigo. Eu quero, sim, mas o tempo dele não é dele nem é meu. É dos patrões. Se os patrões quiserem eu mando engatar logo. São dez cavalos!
Aproxima-se a nossa hora; o comboio vai partir. Há saudades de parte a parte. Temos apenas uns minutos que o meu amigo aproveita, deliciosamente, num caso delicioso. Aqui vai ele. A graça com que o contou, é intransmissível; isto é cópia:
«Eu andava a vender e um homem disse-me: - Tu queres 20$00? Era um homem assim pobre, com uma malita na mão. Eu respondi e disse: - O senhor é pobre, mas se ma der eu aceito. Ele deu-me a nota e eu fiquei todo contente. Ele olhou muito p'ra mim e disse-me: - A alegria é minha. E chorava e limpava os olhos e tornava a chorar.»
- Mas o homem chorava assim como tu dizes?!
- Sim. Limpava os olhos e vinham mais lágrimas.
- De que era?
O rapaz calou-se. Não me soube dizer de que era. E era ele; era ele mesmo a causa daquelas lágrimas! Ele não sabe que causa lágrimas!
PAI AMÉRICO, Notas da Quinzena, 1.ª ed., 1986, pgs 129-130.