
DOUTRINA
«Eu quero aprender a ler!»
Não sei que me deu no peito quando os meus olhos toparam, agora mesmo, a trabalhar com os mais, um que ontem nos apareceu; e apressei-me a subir ao meu escritório e fazer do pequenino a «Nota da Quinzena».
Chegou um automóvel à nossa Aldeia de onde saíram três senhores bem falantes e uma criança das do nosso naipe. Ouvi a história e disse imediatamente que não. Descompus-me um nadinha ao saber da existência de um asilo, na terra, que o não recebeu por amor do regulamento! Amor falso. E como já naquele mesmo dia nos tivessem aparecido dois casos análogos, começo, com voz levantada, a dizer mal da minha sorte. Os senhores, bem nascidos e bem falantes, com muito mais paciência em escutar do que eu em dizer, estavam já resolvidos a enviar o rapaz à procedência e a seguir o caminho de Caldelas quando eu parti a diferença e disse que o tomava como hóspede até ao regresso deles. Entreguei o hóspede ao chefe dos do campo, foram-se embora os senhores e a vida prosseguiu.
Depois de ceia e à hora do capítulo, chamei o Lúcio ao meio a fim de o apresentar como hóspede de vinte dias. Estávamos todos. O pequeno sai do seu lugar e toma o que eu lhe marquei. Começo a fazer perguntas:
- Se te não vierem buscar, tu sabes ir embora?
O hóspede, qual rapaz viajado, dá-me o itinerário de Cête ao Entroncamento. «E ali pergunto pela linha de Portalegre.» Olhos muito vivos. Linguagem muito clara. Ar de inocência.
- Já fizeste exame?
- Nunca andei na Escola.
- Tens pai?
- Quando me disseram quem ele era, eu fui lá e ele deu-me uma sova e disse-me para nunca mais aparecer.
O pequeno era fluente e comovente. Viam-se lágrimas nos olhos dos circunstantes que também levaram muitas sovas por idênticas razões!
- E a tua mãe?
- A minha mãe morreu numa corda, na azinhaga do Geraldo, ao pé da Fonte dos Amores.
Quem conhece Portalegre pode confirmar os nomes. O depoente não dava ares de quem mentia. Nomes da história de Portugal: Azinhaga do Geraldo, Fonte dos Amores! Oxalá jamais alguém os troque, como é costume das senhoras Câmaras, para que sempre fiquem na história! Fonte dos Amores! Também se liquidam desgraças ao pé da Fonte dos Amores.
O nosso refeitório era um túmulo de vivos, pelo silêncio. Os mais pequeninos erguiam-se para escutar.
- O meu pai enganou a minha mãe e outro homem tornou a enganá-la e ela matou-se. O filho não nasceu!
Senhor dos Céus, Rei de Justiça e de Paz, que sentido teria a vida sem a Vossa presença a todos os actos do homem para lhe pedir contas!?
Tinha findado o capítulo. O pequenino estava ali, rentinho ao meu peito. A comunidade tinha dado já o colectivo boas noites quando levanta mais uma vez os olhos para todos e exclama: «Eu quero aprender a ler!»
- Sim, meu filho. Hás-de aprender a ler!
1.° ponto: A desgraça dos asilos com seus regulamentos.
2.° ponto: A desgraça dos homens que pretendem cobrir suas responsabilidades com a capa de pai incógnito e o virem a saber naquela hora tremenda que o filho era conhecido de Deus. Oh desgraça das desgraças!
3.° ponto: Os dogmas da existência de Deus e da Divindade de Jesus e da perpetuidade da Igreja escritos com sangue, provados com o muito chorar e o muito amar, dentro dos muros da nossa Aldeia.
Os senhores bem nascidos e bem falantes podem seguir direitinhos de Caldelas a Portalegre e dizerem ali, em meu nome, à Direcção do Asilo, que se não rasgarem o regulamento do dito, estão sujeitos a perder muitas fortunas.
PAI AMÉRICO, Notas da Quinzena, pp 105-107