DOUTRINA
«Nós agora atiramos-lhe flores»
O segundo grupo das Colónias de Campo correu sem novidade. A boroa era o grande mimo dos colonos: «A gente, em casa, não temos assim!» Pois não. Quem é que tem hoje pão?!
Antes do seu regresso à ilha vieram à nossa Aldeia pesar-se e fazer suas despedidas. Tinham vindo, antes, por duas vezes, fazer uma serenata à malta, a cantar o «Pinga». Oh que primor de vozes! Os nossos responderam no dia seguinte com o «Foi na loja do mestre André», também em forma de serenata, mas ficaram muito aquém.
Eu estava em cima, na varanda, e via-os a sair um a um da casa da balança: «Levo mais um quilo!» Tantas alegrias juntas na alma daquele pequenino! A de ter comido bem. A de se sentir mais forte. A de regressar a casa. Esta, a maior de todas! Como haveria no mundo mais felicidade e mais interesse pela vida, se cada um tivesse a sua casa, só pela força amorosa que de lá vem! A gente lê esta verdade na alma da criança. O dia do regresso é o maior: vão para casa.
Desci abaixo, para estar mais perto deles. Um grupo acode imediatamente a fazer-me festas. Eu também as fiz e disse:
- Hoje tratais-me assim, mas, amanhã, no Porto, correis-me à pedra.
Nisto, levanta-se um pequenino das ilhas de S. Vítor, fita-me com uns olhos flamejantes e exclama:
- Não! Nós agora atiramos-lhe ramos de flores.
As flores deram sempre matéria para lendas milagrosas. Conta-se da Rainha Santa um caso de flores. Flores; este ramo de flores que o garoto das ruas tem para me atirar, é um milagre de amor.
Embarcaram em Cête no comboio das 18 e quê. Nas estações, quere-se saber o que é tanta chilreada. Pergunta-se. Cada um guarda na sua alma, a seu modo, a novidade. Nem todos da mesma sorte. É um erro dizer-se que somos iguais. Estamos agora ocupados com o terceiro grupo, mais difícil porque mais crescidos. Os monitores são: o Armindo, da Faculdade de Engenharia; o Manuel, do Seminário de Coimbra; o Nuno de Riachos, do Seminário dos Olivais; e o Batista, do Porto.
O Nuno estava na estação de S. Bento, ao embarque. É costume comparecerem colonos que já estiveram, a ver se falta algum à chamada e vem novamente na sua falta. É costume. Pois bem. Todos estes se atiravam ao Nuno, de contentes. As mães diziam: «Olha como os nossos filhos são amigos do senhor doutor!» «Como eles são bem tratados!», diziam outros. É o povo chamado baixo. Só as mães.
«Senhor doutor» chamam elas a um neo-sacerdote. Elas não conhecem nome mais alto na sociedade. Dão o superlativo a quem dá aos filhos o superlativo: «Como eles são bemtratados!» Ontem, se aquele «senhor doutor» passasse no Beco, seria um «padreca».
Isto são factos. Vale a pena meditá-los. A Igreja precisa de ir buscar. Chamar, para quê? Não vêm. Conta-se que um sacerdote foi mandado a Paris para fazer apostolado nos bairros pobres onde havia portugueses. Chegou lá. Pôs cartório. Esperou. Ninguém apareceu. Regressou à base. Eis.
Eu também estava. Uma velhinha, «eu tenho 80 anos», mostra-me o neto: «Olhe, fique-me com ele». E conta-me como desejaria morrer bem por saber o seu netinho abrigado - que para maior mal «tem o costume de bulir no que está quieto».
Mas há males maiores. Eu não fiquei com o seu netinho! Não posso. Não temos espaço nem organização; e não queremos amontoar.
PAI AMÉRICO, Notas da Quinzena, pp 97-99