DOUTRINA

Eu estava no meu quarto de dormir, a curtir umas dorzinhas de cabeça quando a porta se abre e entra por ela dentro, quem? - quem é que havia de entrar pela porta do meu quarto? Um soldado com sua farda, uma carta do sr. comandante e um pequerrucho pela mão! Escusado é dizer que as dores de cabeça aumentaram. A carta vinha a dizer a história do pequeno. O soldado confirmava. O pequenino arribado tinha-se instalado no chão a brincar com os cordões dos meus sapatos, alheio a tudo quanto dele se dizia e ao que eu, por causa dele, me afligia.

O soldado foi-se embora. Chamei o Alfredo, que é o meu criado de quarto, e entreguei-lhe o pequenino. Ele anda por aí junto aos mais. Ainda não tive coragem de o chamar a perguntas, nem de o registar no nosso livro de entrada. A perspectiva de caminharmos aqui em Casa para a desordem, apavora-me. Ora eu chamo desordem, verdadeira desordem, ao facto de tomar rapazes à minha conta sem ter para eles organização adequada. Eu não os tomo. Eu resisto ao pequenino que directamente me pede por amor dos que se encontram instalados. É preciso haver um bocadinho de inteligência a governar as forças do coração. Sim. Esta tem de ser a minha atitude. Não é por mim que o barco mete água, mas os de fora não pensam da mesma sorte. Porque se levantou em Portugal a voz de um padre a denunciar o perigo da criança abandonada, entendem os portugueses que a melhor forma de cooperar com ele, é mandarem-lhe crianças abandonadas. Se às vezes calha de eu ler uma das muitas cartas que chegam à nossa Aldeia, vejo nela, nítidamente, esse espírito de cooperação, ignorando-se que a matéria-prima desta Obra é de tal abundância, que não é preciso oferecê-la nem procurá-la. Ela aparece.

Aos leitores devotos d'O Gaiato, a todos quantos conhecem e sentem a Obra da Rua - clemência, piedade para comigo. As nossas Casas têm um limite. Ele há outra maneira mais cristã de cooperar: é fazer mais abrigos para as crianças perdidas. Se a Obra da Rua já demonstrou que pelas ruas e caminhos há brilhantes por lapidar, porque não aproveitar estas riquezas perdidas para um Portugal melhor? Uma Casa do Gaiato em cada distrito não era demais. Eu quero dizer melhor: quero dizer em cada diocese. Diocese supõe a Igreja. Só a Igreja é que tem alma. Só ela sente. Tudo o mais é esqueleto. Fora dela toda a desventura é episódio. Mas que é da Igreja? Aonde estão os sacerdotes sem ouro nem prata? Sim, digo bem, sem ouro nem prata. Para que o dinheiro nas nossas mãos possa ter força de sacramento, é preciso receber e distribuir com espírito de pobreza. A pobreza de Jesus. Por isso mesmo a primeira condição que se exige aos que quiserem trabalhar em Obras deste teor, é uma isenção absoluta de qualquer interesse material. O discípulo tem de ser igual ao Mestre.

PAI AMÉRICO, Notas da Quinzena, pp 94-96