DOUTRINA

Um desabafo

Era noitinha. Tínhamos acabado a ceia e saíam agora os rapazes para suas casas, refeitório fora, em harmonioso desalinho. No átrio estava uma mulher nova com dois filhos ao colo, seguida de um terceiro - o Belmiro, como ao depois se soube. Não lhe quis falar. Era o segundo caso do dia.

De manhã, precisamente no mesmo sítio, outra mãe com três filhos tinha gemido seus males. Todas as razões que a gente lhes apresenta, são sem razão se não aceitamos os filhos. Nem nos escutam, tão pouco, ocupados em relatar: «Tome sequer um. Olhe, este».

Se me fosse permitido um desabafo, seria agora ocasião de o fazer, aqui, no jornal O Gaiato, rentinho ao coração de cada leitor onde sinto ter um amigo. É um desgaste que sofro no meu equilíbrio. Não é o caso do «cria fama e deita-te a dormir». É mas é um constante - «desperta porque tens fama»! E desta sorte, não há quem não perca a paciência. A noite ia caindo. Mãe e filhos estavam. Dois, dormiam no colo da mártir. «Sou de Cinfães.» E contou, contou, contou. Vergonha nossa. Desleixo nosso. Cristãos pintados! Alguns dos nossos que iam naquele momento p'ra suas casas, ficaram por curiosidade. Vi olhos entumecidos...! Desenganei a mulher: «Vá comer, mas os filhos não ficam.» Ela foi e eu também fui espreitar de longe por detrás dos vidros de uma janela, no escuro.

Vi dois dos da cozinha com tigelas de caldo na mão; e ainda um terceiro com fatias do nosso pão. Eles, que brincam tanto por tudo e por nada, guardavam silêncio, ali diante da majestade do quadro vivo e passavam em oração. Quem ama, reza!

Acabou o repasto. A mãe levanta-se e lá vai.

- Ó Veiga. Vai depressa! Diz àquela mulher que venha cá.

Estávamos agora mais tranquilos. Tirante meia dúzia, todos os nossos dormiam.

Aceitei o Belmiro. Seis anos de vida e de trabalhos. «Fique-me também com este de peito, que eu não tenho peitos!» Não fiquei. O Belmiro chora. Quer ir com a mãe. A beleza mai-la abundância da nossa Aldeia não valem o que vale a mãe! Esta abaixa-se com os dois ao colo: «Oh meu filho que aqui tens de comer!» Dá-lhe um beijo na face e desaparece na escuridão. Era noite fechada. O Veiga ao pé de mim, soluça!

- Que tens tu, meu filho?!

- A desgraça desta mulher!

Ele, que nasceu nas mesmas palhas, sente. Clama a desgraça do seu semelhante. É necessário vir à nossa Aldeia, abrigo do Rebotalho, para se conhecer quem são os verdadeiramente grandes!

Aqui fica relatado o caso. Se o leste com lágrimas nos olhos - és feliz! Já em si, a descrição é linda; porém, muito mais lindo é saber-se que naquela noite, depois de ter saído das da mãe, passou o Belmiro às mãos da menina Idalina que lhe deu um banho quente, uma tigela de leite e uma cama lavada.

Dias antes tinha estado um trabalhador de Tarouca, tisnado, e agora viúvo. Veio a pé, com um filho de seis anos. Não ficou. Amanhã é certo e sabido o que vem pelo correio, por mão própria e de companhia. Chego ao Lar do Porto, fujo para Miranda do Corvo, passo por Coimbra, regresso a Paço de Sousa - sempre o mesmo panorama. A nossa vergonha. A nossa culpa. A nossa incapacidade. E diz-se depois à boca cheia que se ama a Deus...! Mentira!

PAI AMÉRICO, Notas da Quinzena, pp 86-88