DOUTRINA
Para conhecer bam a cidade, é necessário correr os becos... Todos os cantos mais escuros.
Fui ao «bairro das latas». Chovia abundantemente. Preferi assim para melhor ver a miséria. Levei comigo um dos nossos. Eles já de lá vieram e é bom que se não esqueçam, com o pobre conforto das nossas Casas. Atravessei pelo meio de todas aquelas barracas. Informei-me dos mais necessitados: «São todos muito pobres; precisamos todos muito».
Entrei na primeira casa: homem sem trabalho, mulher com duas hérnias, tinha comido dois tostões de berbigão e era já rente à noite; muitos filhos e pequenos; lareira apagada; e por isso não se pode chamar àquilo um lar.
Dizem-me que vá a uma casa vizinha: «São dois pobres doentes». Ele, velhinho e cheio de reumatismo, andava a vender uma tabuinha de areia fina «para arranjar para a ceia»; ela, velhinha, com uma tuberculose óssea; vivem numa antiga capela; não vi lá imagens de santos canonizados mas pareceu-me ver santos de carne e osso.
Entrei ainda noutra; uma barafunda, tudo amontoado: «Sr. Prior, aqui chove como na rua; não sei onde hei-de colocar os nossos trapinhos».
A casa estava forrada de papéis, mas os papéis não evitavam as beiras do telhado. Um rancho de filhos ao redor dum púcaro de comer que seria pouco para um.
Por hoje não conto mais. Fiquei abismado; e ainda aqui não é o pior. Não conhecia, assim como a maior parte dos conimbricenses não conhece. Conhece-se a cidade mas só superficialmente. Para a conhecer bem, é necessário correr os becos, os muros velhos, os barracões e todos os cantos mais escuros. Por ali também se conhece a sociedade; são também criaturas humanas, são também filhos de Deus...
Mas já foi muito pior; e a miséria já foi mais palpável. Os bairros vieram remediar muitos males; que continuem para bem da sociedade.
Ando deveras preocupado. É o inverno. É o terror dos Pobres e nós somos pobres. São cem corpos a agasalhar. São as costureiras a pedir flanela todos os dias: «Não temos um fio de nada para fazer roupa; veja se compra flanela». Não perguntaram se posso comprar. São os Pobres a dizer que o «sr. P. Américo dava sempre neste tempo muita roupinha e cobertores». Eu também dava, mas não tenho o quê.
Ainda há dias a costureira de Coimbra me veio pedir se a «deixava ao menos comprar dois metros de flanela para os dois mais novos que andam sem cuecas». O remédio foi dizer que sim, mas só dois metros.
Quem tiver géneros desta raça, de que não precise, mande para cá. Nós gastamos tudo; somos muitos e os Pobres todos sabem onde são as nossas Casas. [...]
Pai Américo, O Barredo, pp 65-68