DOUTRINA

Eu quero ouvir o Evangelho da boca dos Pobres

Como «Faísca» a toda a hora me pedisse para ir também quando eu fosse ao Barredo, calhou desta vez. Saímos de Casa imediatamente a seguir à refeição do meio-dia. Avelino acompanhou-nos, com outra missão: ia ao Araújo & Sobrinho em negócios. Arranjou ali uma dívida de 40 contos. São coisas dele e da firma. Declaro aqui, para que me não peçam contas. Quem quer não fie!

Na Batalha separámo-nos. A nossa primeira visita foi ao Terço, aonde temos o «Zé da Cozinha» com uma perna amputada! Temos este aqui. Temos no Sanatório de Gaia. Temos no Sanatório de Coimbra. Temos no Hospital de Paredes. Eu não quereria, já se vê! - mas não são as pedras vivas que seguram a Obra?

Do Terço metemos à Bainharia. Ao fundo, dou com uma peixeira, minha conhecida, plantada no meio da rua com uma tábua na mão e, sobre ela, um traço de pescada. Ela não dava fé de quem passava; nem de mim, que de longe a estava mirando. Aproximei-me. Toquei-lhe no ombro. Ela acordou: «É o Senhor», disse! Claro que se não dirigia a mim. Aquele «é o Senhor!» não era para mim. Ela não dava fé de quem passava. Ela não oferecia o seu peixe. Ela estava a rezar...

Esta foi a primeira alegria imensa, inenarrável, que naquela tarde colhi. Deu-me a peixeira de Ovar. Toquei nos ombros de Jesus Nazareno!

Estávamos no largo da Ribeira. Havia dois vapores a descarregar. «Faísca» quis saber coisas e coisas e coisas, às quais facilmente pude responder.

Iam-se fazendo horas; eu não tinha ido ali para ver barcos. Levava, até, uma grande missão: como tivesse dito aqui há tempos, de uma mulher idosa que fora criada de servir e hoje é minha visitada, aconteceu que uma criada de servir me confiou metade do seu ordenado para ela! E eu desobriguei-me da missão. Estava ela na enxerga; ao pé a sua irmã. Falam à moda de Resende. Demorei-me mais do que o costume; Era missão.

Ela leu um testamento aonde a senhora contemplou a criada, mas não lhe presta. Só daqui a dois anos. «Eu mando pedir um bocadinho de pão. Mandei pedir cem mil réis pra um cobertor. Nem um alho me dão». Não é uma queixa, muito menos um protesto. É, sim, um desabafo. «Agora é que eu precisava, meu Padre; mas só daqui a dois anos.»

Ela não pode erguer a cabeça do travesseiro. Tinha as mãos escondidas debaixo de uns farrapos. Pedi-lhe a mão. Dei-lhe a nota do Banco. Declarei que era de uma criada de servir. Ela desata a chorar: «É o Senhor que me ajuda». Outra vez Jesus de Nazaré a chorar e a perdoar! Quem não há-de ir ao Barredo - a todos os Barredos?! Quem não há-de lançar nas almas a semente do Eterno?! E de que serve; a quem aproveita a Imprensa, se assim não faz?!

Descemos, «Faísca» mais eu. Gostei de levar o «Faísca» comigo. Primeiramente, porque foi ele mesmo quem pediu. Depois, como vai fazer o Liceu, pode ser que um dia, homem da Nação, venha a ser chamado aos problemas sociais, e já sabe como se faz: - Ir ver. Apalpar. Sentir.

Sem sair do mesmo prédio, abre-se-nos uma porta escura. Era um quarto. Três mães com os seus Inocentes. Tão pequeninos! Tão engraçados! «Senhor Pai Américo, venha cá mais vezes», disseram as mães. E eu vou lá mais vezes.

Mais quartos sem luz. Mais resignação. Mais heroísmo. Eu finjo queixar-me à beira dos leitos: «Mas eu não posso. Eu fico pobre». É uma provocação. Eu quero ouvir o Evangelho da boca dos Pobres. E oiço. E oiço. E oiço. Pregadores divinos de verdades eternas! Eles falam com lágrimas, com certeza, com devoção: «Não fica, meu Padre!»

Estamos a caminho do regresso. Em baixo, sob os arcos da Ribeira, estendem-se mulheres com suas tendas. Ao pé, grupos de homens ribeirinhos. «Faísca» mais eu passamos. «Adeus, fulano. Volte depressa. Venha-nos ver.»

Tomámos o eléctrico em S. Francisco. Ao passar na rua das Flores entrei uns momentos numa loja amiga: uma ourivesaria. Tinha ali uns anéis à venda e ia saber. Enquanto espero, falo da abundância que trazia no coração. O dono chora. Pede-me que sempre que vá ao Barredo, passe pelo seu estabelecimento; e mostra-se constrangido. Os setins. O ambiente. O reluzir...

Não, acudi eu. Não senhor. Isto é tudo preciso. De onde eu venho é que se escusa. E preguei ali o Evangelho.

Pai Américo

O Barredo, pp 61-64.