DOUTRINA
«Aqui é tudo sujo, Padre; até o número das portas.»
Arrumei tudo em Casa, enchi a carteira a mais não e lá vou levado, serra de Valongo em fora, contente como os passarinhos. Dar! Distribuir! Pregar Cristo Ressuscitado!
Entro no labirinto a meia tarde. Quedo a procurar o número de uma porta, indeciso. De ao pé, saem duas meretrizes a perguntar, respeitosamente, se me podem ser de algum préstimo. Chamam pelo meu nome. «Aqui é tudo sujo, padre, até o número das portas.» Na verdade, o número que eu procurava era ilegível, pela caliça. Eu agradeci a informação. Ando afeito à gente de má nota, nas ruas mal notadas. «Aqui é tudo sujo.» Destas duas talvez não, mas doutras meretrizes sei que guardamos filhos no quente das nossas Casas; que elas podem gerá-los, mas não podem ser mães!
Subi ao derradeiro andar. É um tuberculoso. Tinha ido ontem a enterrar, um que naquela maré ia procurar e é muito possível que me informem na mesma, na próxima visita que faça a este. Estou afeito a estas notícias. Ali é a fonte deste mal. Os Barredos são a origem deste mal.
Assim começo a descer quando oiço e vejo um mundo infantil à minha roda. São vizinhos do mesmo prédio. Todas aquelas crianças, todas, têm aspecto doentio e são muito, muito mais de atender do que as outras que se vão buscar ò estrangeiro. Nisto levanta-se uma voz: «Venha aqui, padre». Era um quarto interior com janela para o saguão. Uma enxerga nua e duas criancinhas nuas. «Olhe que eles não saem à rua por não terem nada que vestir» - foi a magoada notícia de uma vizinha - «tenha pena!». A mãe estava. É uma rapariga nova. O pai tinha saído: «Anda ò pé do rio». Como este, quantos não andam assim - quantos! Oh rio Douro, o que tu levas pró mar!
A mãe dos dois pequenos continua a dar notícias: «A nossa vida é tocar, mas a Polícia não deixa». Agora estão mais vizinhos; é quase multidão. Todos acodem pelos dois nus: «Olhe que eles não têm nadinha!».
Saio da porta do número indecifrável. Às duas juntaram-se outras; e, agora, são muitas as meretrizes que me espreitam.
Pai Américo, O Barredo, pg 45-46