DOUTRINA

 NÃO NOS ILUDAMOS. EU NÃO SOU O «POETA DA MISÉRIA» COMO ALGUÉM ME CHAMOU...

Naquele dia, fui pessoalmente colocar sobre os ombros daquela que se queixava de frio no mês de Agosto, um precioso xaile que me deram. Digo precioso porquanto ele foi companheiro e testemunha de uma vida que se apagou aos 94 anos: «O xaile era de minha mãe que morreu com 94 anos». Muito há-de ter dado que falar esta estimada peça de roupa, naquele bairro pobre, aos ombros de uma Pobre, sim. Muito se há-de ter ali falado. O povo conhece e ama a Deus somente pelo bem que nós fazemos uns aos outros; e até aqueles que não conhecem nem amam, começam a sentir dúvidas da existência de Deus e sede de O amar. Gostei de ver o semblante extraordinariamente alegre da que se queixava do frio, e da meiguice com que ela apalpa a sua prenda, enquanto diz «ai que quentinho».

Como sempre acontece desde que eu tenho dentes, a seguir a estes vieram mais e mais e mais xailes; e nós vamos favorecer mais e mais e mais Pobres.

Também ontem aqui na Aldeia fomos visitar Pobres; era eu e quatro rapazes. Levámos um daqueles graciosos pacotes de açúcar que alguém de Lourenço Marques nos costuma enviar, dentro do pé de meias. Um dos Pobres, que está de cama há um ror de tempo, toma o açúcar em suas mãos com visível contentamento enquanto diz, resignadamente: «Não sei por onde ele anda agora». E continua a informar-me, com palavras suas, que ninguém arranja nem sequer um quarto dele, e que já se vai afazendo a tomar o café sem ele: «Boto uma pedra de sal pra disfarçar».

A bola de açúcar estava ali sobre a mesa. Estávamos nós todos. Estava o catre. A Doente cerra os olhos enquanto balbucia: «Fel e vinagre. O café sem açúcar é melhor de tomar do que o fel que meu Jesus tomou». Eu cuido que estas palavras, ditas naquela hora por aquela Pobre, haviam de calar muito mais fundo na alma dos candongueiros do que o fazem as pesadas sentenças dos juízes. Haviam, sim, mas eles desconhecem estas belezas escondidas. Eles amam o esterco.

Não nos iludamos. Eu não sou o «poeta da miséria» como alguém me chamou. Se há uma Doente pobre com bastante resignação que torna o fel do Calvário em açúcar do seu café, isso pode resolver o problema dela, sim, mas não nos tira o crime de sobre os nossos ombros. O crime de não darmos a esta e outros como ela, o açúcar e tudo o mais a que têm direito. Não nos iludamos...

Quando chegámos a casa, o Avelino acabava de colocar o correio sobre a minha mesa de trabalho. Começo a abrir. Dentro de uma carta vinham duas notas de quinhentos a dizer «para os Pobres». Falam duas iniciais: M. F.... Confirmaram as promessas de Jesus. Eu tinha dado cinquenta e venho receber mil.

Pai Américo