DOUTRINA

É necessário pregar com obras realizadas a missão social da Igreja

Uma vez em Lisboa e antes de mais nada, dirigi-me o hospital dos Capuchos ver ò Zé Ernesto que ali temos internado, a quem se amputou um dedo da mão. «Olhe; não posso ir p'ra militar», foi a lamúria do rapaz. Às avessas de inúmeros deles que morrem por não ser magalas! O Capuchos é labirinto. Já estava mesmo a desanimar quando um garoto me diz: «Vá à cama 24».

Parece ter sido ali outrora um convento de frades e hoje quer ser hospital. Adaptação. Anda o Governo empenhado em construir de raiz. Feliz hora em que tal se resolveu. Assim, sim.

Dali fui ò Quelhas, à Emissora Nacional. Eu agora falo na Emissora Nacional! E tudo são atenções e porta franca e sempre que queira e protestos de muita admiração e tudo mais que é dado à liturgia das coisas e das pessoas. Eu, porém, faço o sinal da Cruz antes de começar e com este sinal venço-me e venço.

Da Emissora dirigi meus passos ao Terreiro do Paço. Gosto dos nomes antigos. Que mundo de evocações não tem aquele nome! Nasceu ali a História de Portugal! A Obra da Rua tem escrito ali, também, algumas páginas da sua humilde história.

Subi acima, a um dos Ministérios, e perguntei pelo senhor fulano de tal. O contínuo apresenta-se e informa que ainda não tinha chegado. Como eu fizesse menção de olhar prò relógio, ele, que sabia as horas, logo acudiu: «É que ele, às vezes, tem que fazer lá por fora e vem um bocadinho mais tarde». Inteirado da demora pelos afazeres, indaguei do seu colega. Também não estava; «mas não demora», disse. E acrescenta: «Sabe?, o senhor fulano tem uns incómodos de vez em quando». Delicado e solidário, o contínuo puxou de uma cadeira para eu me sentar, mas eu tinha na verdade que fazer lá por fora e não aceitei. O ministro daquela pasta tinha-me recebido no gabinete antes de eu procurar os dois subordinados!

O dia correu-me bem. Aquele terrível non do Padre António Vieira não me apareceu. Consegui, de um ministério, um pequenino subsídio para a compra de um fogão de que há necessidade no Lar do ex-Pupilo dos Reformatórios, de Coimbra. Consegui, de outro ministério, um outro subsídio para ajuda do pagamento de um pequenino olival e casa rústica, para juntar ao património da Casa do Gaiato de Coimbra. Não se cuide, porém, que estas pequeninas ajudas vêm logo ao primeiro toque. Não vêm. Por vezes, há troca de gemidos. Eles que não e eu que sim; e no final de tudo é que vem alguma coisinha! Mas nem por isso nos damos por descontentes. Ai de nós se vivêssemos de facilidades e de abundância!

Finalmente, chega a hora de pedir na Estrela. Estava marcado que o fizesse a todas as Missas; e assim foi. Opinava-se que devia ir à capela da Lapa, em vez da igreja, na Missa do meio-dia. Que ali é que era! Que estavam ali os embaixadores recamados e constelados. Agradeci e não fui. Cumpram-se os programas.

Era duma vez um cão que se botou à água para apanhar a carne que outro cão levava na boca... Miragens!

Eu não peço; eu dou. Parece basófia e é humildade. Humildade porque verdade. É a Obra da Rua que está por trás. É ela que fala, que comove, que convence. Ela é fogo, é luz. Obra social. Obra da Igreja. É necessário pregar com obras realizadas a missão social da Igreja. Quem mais social do que Jesus Nazareno? Não era Ele o Homem das multidões? Dos caminhos? Dos doentes e dos aleijados? Ele dava de comer e aceitava de comer. Era convidado e comparecia. O que não seria o festim de Betânia com Lázaro ressuscitado?! E outros e outros e outros.

Sim. Obras que falem a língua de Jesus Nazareno para que o povo veja, acredite e vá em cata d'Ele como naquele tempo: Volumus Jesum videre. Sim. Queriam vê-lo. Ele tinha ressuscitado Lázaro!

No fim dos peditórios fui a ver: sensivelmente a mesma coisa que na igreja anterior. Muito bem!

Como tivesse umas horas à minha disposição, fui à Parede ver um doente. Ia mais gente no comboio, muita gente. Quem é que não gosta daquela cercadura de Lisboa? Eu, porém, ia com intuitos mais alevantados. Eu era o romeiro silencioso do turbilhão: Ia visitar um doente. Doente que se pode adorar sem cair em pecado de idolatria. Como? Adorando nas suas chagas as Chagas de Jesus, o Homem das Dores. «Estou assim há mais de sete anos!» Aquele assim é o estado do doente que eu visitei. Hei-de lá tornar. As forças vão-se buscar à fraqueza: à própria e à dos mais. O Reino de Deus é às avessas dos reinozinhos do mundo.

Regressei à capital pelo mesmo caminho. Na carruagem aonde me encontrava, encontrava-se igualmente um grupo de rapazes finos, elegantes, ar da Costa do Sol. Um deles, de dezasseis anos, não tinha feito a quarta-classe e é um abandonado. O pai vive ocupado com outra. A mãe, ocupadíssima com outro. O filho anda por lá; e, para maior desgraça dele, tem quanto dinheiro quer. Os meus são todos abandonados por miséria. Aquele, aqueles, pois há muitos mais, também por miséria vivem abandonados. É o vínculo. É o sacramento. Eis o papão. Amarrado por toda a vida? Não senhor. Pode haver a separação. O vínculo é que permanece. De todos os problemas que a vida oferece, o nosso é o pior de todos e o mais difícil de resolver - porque nosso. Mas nenhum é nó cego. Não é. Não existe homem nenhum que esteja fora do pensamento actual de Deus: ele e o seu problema. Com esta luz e com esta certeza, nós próprios podemos tirar um bem dum mal. O vínculo é esta doutrina. O vínculo é fonte de energias morais, até para os mal-entendidos. Une os separados. Os filhos não sofrem por isso. Doutra sorte é o que para aí se vê.

Tomei o caminho do Porto no comboio da noite, de sorte que cheguei ao Lar à hora do café. Estavam todos à mesa. Não contavam. O «Ferreirinha» ainda estava quente dum relógio que tinha comprado uns dias antes por 380$00. Mal me vê, estende o pulso: «Olhe!» A seguir vem o rosário dos pedidos: «Deixe-me comprar também um». Safei-me das barafundas e meto-me noutra maior, em Paço de Sousa. Quatro dias de ausência. As notícias. As queixas. As perguntas. Só visto! (...)

Pai Américo

Do livro De como eu fui..., pp 152-157.