
DA NOSSA VIDA
Acolher
A Obra da Rua nasceu para ser o amparo da criança abandonada e desprezada, quando eram muitos milhares os que deambulavam pelas ruas das cidades e até por toda a extensão do país. Recordo-me de ter falado há uns quinze anos atrás com alguém, chefe de unidade fabril, que manifestou as suas dificuldades de infância, que o levaram a percorrer mais de duas centenas de quilómetros, em busca de pão. Não era preciso ir buscar exemplos fora da nossa Obra, visto que encontramos muitos nas descrições de Pai Américo.
Os motivos que levam ao abandono hoje, de crianças e também de adultos, são naturalmente diferentes dos de outrora. Se nesse tempo eram compreensíveis as causas, agora é arrepiante o modo como se abandona, especialmente os adultos, particularmente os pais ou outros familiares.
Este é um sinal dos tempos, porque quem abandona os seus pais da terra, já antes abandonara o seu Pai do Céu. São realidades que estão intimamente ligadas.
Esta realidade, nua e crua, vem-se espalhando nas últimas décadas. Não se ouve falar de filhos que colocam os seus pais em lares, e que depois das primeiras visitas não mais voltam a procurá-los?! E nos hospitais?...
Quem despreza as suas origens perde o sentido da sua vida. Vive sem saber de onde vem nem para onde vai.
Sendo as nossas vidas e Obra, para serem dedicadas aos abandonados, crianças ou adultos, vamos correspondendo às necessidades que se nos impõem, acolhendo aqueles que são vítimas da profunda ingratidão dos que geraram.
É um casal. Ela muito doente. Ele é-lhe muito dedicado. Apareceram-me. Contou a sua situação, não tinham onde pernoitar. Verifiquei que já os conhecia, afinal, sem nunca os ter visto pessoalmente. Faláramos ao telefone há uns oito anos por interposto casal. Por estes intercedera ele na altura, visto que esse casal com uma filha, tinham a água da chuva a entrar pela casa adentro, precisando de recuperar o telhado. Também aqui havia um doente grave — ele. O problema resolveu-se, e essa família passou a
sentir-se mais confortável na sua casinha.
O caso de agora. Pela gravidade da situação senti-me intimado: Como poderia deixá-los na rua, sendo ela tão doente? Prostrada, com a cabeça no tablier do carro, não tinha forças para ao menos olhar para nós. É certo que, o carrito em que viajavam, foi resultado do cuidado de uma filha que lho deixou quando emigrou, para o pai levar a mãe ao hospital quando necessário. Mas, estando ela naquele estado, dormir no carro seria uma agonia.
Para nós não se trata de criar mais uma modalidade caritativa. Trata-se de responder a uma situação de emergência a que nos sentimos impelidos. Ficaram.
A caridade não acaba nunca… Todos, para podermos viver, que é muito mais que vegetar, precisamos de ser amados. Quando o amor falta, tudo perde sentido. Se os familiares não cumprem a sua obrigação com os seus, pelos mínimos, a caridade, como dom de Deus, tem de cumprir.
Há uns anos era comum haver órfãos de pais vivos; nos tempos actuais muitos filhos tratam seus pais como se estes já tivesses morrido. Não há nada a fazer? Pai Américo perante os abandonados pela família ou pela sociedade, concluía que não havia que pensar mas que agir. Mas, tudo hoje carece de muitos papéis, que adiam a realização das obras…
Padre Júlio