DA NOSSA VIDA

«Pobre terra, para onde caminhas sem os espaços para o amor gratuito?»

Descobri esta frase, um verdadeiro e actualizado pensamento, no meio de muitos dos textos publicados n'O GAIATO pelo nosso falecido Padre Manuel António, os quais tenho estado a ler em vista da sua publicação em livro, a sair em finais do corrente ano de 2021. Nessa altura, em que transcorrerá um ano do seu falecimento, faremos memória singela de alguém que dedicou integralmente o seu ministério sacerdotal à Obra da Rua, cumprindo n'Ela o envio do seu bispo e o seu desejo, também aquele um devoto de Pai Américo e de sua Obra.

Voltando ao pensamento inicial, sentimo-lo como algo com que a Obra da Rua se tem visto constrangida ao longo das últimas décadas. É um sinal dos tempos que vivemos, da regulação e o controle de tudo o que se faz como acção social. Seja qual for a motivação que a concretize, tem de haver para isso uma prévia permissão oficial, chamado licenciamento. Que seja necessário para uma actividade económica, concorda-se. Mas para a espontânea acção caritativa, já não se enquadra, porque esta exigência a transformará, mais tarde ou mais cedo, em mais uma actividade económica.

A conclusão a tirar, é que já não é possível, no mundo em que estamos inseridos, «dar a Deus o que é de Deus» sem passar por César, excepto naquilo que é exclusivamente do foro íntimo de cada pessoa.

Em contraste com este afunilamento da vida, vão-se vendo reacções concretas de cada vez maior número de insatisfeitos que, saindo do modelo estabelecido, optam por um tipo de vida que alivia muito o espartilho que a sociedade comercial criou e aplica. Não será utopia acreditar que é possível haver de novo confiança entre as pessoas, que a palavra pode voltar a ter crédito, que o amor do próximo pode ser isento de interesses pessoais mesquinhos... porque tudo isso já se viveu.

Não será a incapacidade de perfeição que justificará a desistência de um modo diferente de organização social, mais de acordo com a essência e as aspirações humanas mais genuínas. Não tenho qualquer dúvida em sublinhar que a alegria de viver é um estado natural ao homem, e que esta só se alcança quando este se sente acolhido pelos outros pelo que é e não por ser um factor contributivo de uma organização económica.

Criar espaço para o amor gratuito, na expressão do nosso Padre Manuel António, foi uma tarefa que nunca o preocupou enquanto viveu o seu carisma com os pobres de Benguela, mas que se tornou num anseio desde que as circunstâncias em Angola o obrigaram a regressar a Portugal nos primeiros anos da Independência.

Para nós, continua a ser tarefa a cumprir. Apesar da força do espartilho que nos constrange, não podemos desistir de abrir clareiras para que haja espaços para o amor gratuito.

Padre Júlio