DA NOSSA VIDA
Pó
Nos séculos mais recentes, a sociedade humana foi-se estratificando, ao mesmo tempo que a maioria das populações procuravam encaixar-se naqueles estratos que davam mais conforto e, por conseguinte, melhor qualidade de vida. As cidades, e em seu redor depois, foram os polos de atracção onde as gentes se congregaram.
Como resultado, as pessoas foram-se afastando do contacto com a terra e dos trabalhos que a partir dela podem gerar riqueza. Outros meios de vida tornaram-se mais atractivos, longe da vida rural.
Com todos os prós e contras, vantagens e desvantagens, benefícios e prejuízos, a vida seguiu o seu curso. Mas a voz da terra nunca deixou de se ouvir e, apesar da sua dureza causadora de rejeição, a terra mantém o seu carácter maternal, nunca se rompendo em definitivo a ligação umbilical entre o homem e a terra. É uma segunda voz do sangue, que ultrapassa todas as conjecturas teóricas e avanços científicos.
Nestes dias recentes que passaram, andamos na apanha da batata. É um cerimonial da Casa do Gaiato que vem desde a sua origem. Tal como a vindima, nem sempre possível com a presença de todos devido aos calendários escolares, é uma tarefa que nos aproxima à mãe terra, ao seu ventre de onde nos vem o alimento. Os nossos Rapazes verificam com os seus olhos e mãos, como nos vem o pão de cada dia, ao contrário de muitas crianças que o vêem sair ensacadinho das mercearias e hipermercados. Eles fazem, ainda que sem perfeita consciência, por agora, a aproximação à mãe terra e à dureza com que ela trata os seus filhos. Mas, logo de seguida, dá-lhes uma grande compensação, abrindo-lhes, em abundância, outro grande bem da terra, a água límpida e fresca retida na nossa piscina.
À medida que o tractor avança pelos sulcos abertos entre as batateiras, a máquina que lhe vai acoplada traz à superfície a causa do nosso estar ali, com custo e com gosto. Em seu redor, uma nuvem de pó se levanta, acompanhando homens e máquinas até que chegue ao fim mais um carreiro de batata. Também me custa estar ali, mas gosto de estar. É preciso que esteja... Este pó eleva-me o pensamento...
Trazemos connosco desde a nossa Mãe, esta obrigação e certeza de que nunca nos desligaremos dela, com ela e em colaboração mútua comeremos o pão, zurzido com o suor do nosso rosto, que lhe dá um sabor inigualável.
Por fim, a ela voltaremos, para uma vida nova, onde o pó será incenso de suave perfume, inebriando a alma não de peso mas de suavidade permanente.
O novo pó será sinal de vida e não mais alusão de morte.
Padre Júlio