DA NOSSA VIDA

Um dia

Transcorrida a noite, tempo de repouso e descanso, chegados às sete da manhã, um dos dois irmãos mais velhos deixa o seu quarto e segue para a cozinha, onde vai preparar o pequeno-almoço da comunidade. De véspera, ficou alinhado o que será servido: pão, leite temperado com cacau ou cevada, manteiga ou outros em alternativa.

Entretanto, os Rapazes que ainda não saíram para as escolas ou para o trabalho, levantam-se e preparam-se para um novo dia. Quase todos em idade escolar, com suas mochilas às costas, seguem prontos para tomar a primeira refeição do dia, que lhes esteve a ser preparada.

O chefe, mais velho que os restantes, dá-lhes entrada no refeitório e antecede a refeição com a oração da manhã, rezada por uns em silêncio, por outros balbuciada ou ainda proclamada em tom de voz normal, consoante a vitalidade ou o entorpecimento matinal de cada um. Os mais novitos, já capazes de o fazer, encarregam-se, depois, de colocar em cada mesa os dons que nos darão força e disposição para os trabalhos que cada um irá realizar durante a manhã. A meio desta, algo mais será reforço para o pequeno-almoço. Preenchido o apetite matinal, um novo pensamento para Aquele que nos deu a vida, um novo dia e a energia para construir o ser de cada um de nós, em entreajuda.

Os que podem, livres de compromissos no exterior, repõem tudo no seu lugar, preparando as mesas para a refeição que depois virá. E ainda irão ocupar-se na aprendizagem que as nossas oficinas transmitem, pelos serviços em que estão vocacionadas.

A hora do almoço não tem o movimento, a alegria e a azáfama de há quinze anos atrás. Mantém-se o mesmo apetite e as conversas informais que caracterizam a juventude na sua boa disposição. Poucos são os comensais, pois os restantes membros da comunidade, por imposição do tempo cronológico, almoçam nas escolas ou cantinas por onde andam nesse momento do dia. Quando antes o repouso imediato era substituído por um jogo aguerrido de futebol, agora são outros jogos mais pacatos que se fazem, depois de um café tomado no nosso bar.

A tarde decorre como a manhã, satisfazendo as encomendas e trabalhos internos ou tratando de expedir O GAIATO para os nossos Leitores, quando é caso disso.

A hora do lanche vem assinalar a aproximação do fim de mais um dia de actividade, cada qual na sua, pela idade ou pela opção que tomou. A transformação da realidade que nos envolve e que é a nossa casa, faz-se em simultâneo com a da pessoa de cada um, num ambiente de serenidade e paz, nas coisas lindas que Pai Américo nos deixou e com aqueles que os caminhos da vida conduziram ao mesmo lugar. Assim tem sido ao longo de quase oitenta anos, nesta Casa do Gaiato de Paço de Sousa.

Quando corre o horário de inverno neste meridiano em que nos encontramos, é já noite quando nos voltamos a encontrar todos à volta da mesa, para o jantar, precedido pela oração mais longa do dia, ao colo da Mãe do Céu. Que assim seja sempre, falando-Lhe de tudo aquilo que durante esse tempo passa pela cabeça e coração de cada um. Depois volta a algazarra, não tão intensa, naturalmente, como quando éramos mais de uma centena.

Antes dos últimos trabalhos, já preparatórios para o dia seguinte, também os últimos domésticos, para que o refeitório, copa e cozinha fiquem aprimorados.

Mais um dia se viveu e mais uma noite para dele descansar, tantas vezes interrompida por inquietações e incertezas que o dia seguinte desfará e mostrará como é verdadeiro o caminho que escolhemos continuar a percorrer, desvendado por Pai Américo. Como ele é diferente de um ilusoriamente melhor, numa vida pré-determinada e standardizada, fechado à novidade que é cada nova criança que connosco vem viver! A vida em família abre-se naturalmente à novidade, no tempo e na humanidade. A vida é sempre inacabada, tal como os anseios que habitam em cada ser humano.

Padre Júlio