DA NOSSA VIDA

«Está tudo vazio... Quando é que elas voltam?...» Tem sido esta a permanente lamentação chorosa da Isabel, sempre que me cruzo com ela no Calvário. A Isabel que era uma mulher alegre, sempre enfeitada com os seus colares e voltas no peito. Sempre lhe dirijo uma palavra de consolo e de esperança: «Não chores que elas vão voltar...», apesar de, intimamente, um sentimento de incerteza me assaltar. «Eu não saio daqui, eles não me levam...», é a sua resposta afirmativa e simultaneamente dolorosa, várias vezes repetida.

Foi em nome de os retirar dos "perigos " a que estavam sujeitos no Calvário, como disseram, que foi cometido este acto contranatura e contra a vontade de todos, doentes e seus familiares, sem falar nos tutores que por eles se responsabilizam, que nos retiraram, até ao momento em que escrevo, 25 dos nossos doentes.

Décadas de vida connosco não foram suficientes para provar que estão bem e em segurança, e para mostrar aos desconhecedores do que é a vida no Calvário, que aqui, quotidianamente, se vive em comunidade e em família, apesar das limitações com que a natureza marcou cada um. Doentes profundos que, apesar disso, reconhecem com quem eles vive, doentes crónicos ou com insuficiência motora, doentes constrangidos por diversas enfermidades incuráveis, formam uma comunidade em que a vida e as capacidades se partilham, num espírito de entreajuda carregada de amor fraterno que os faz felizes, amigos e irmãos.

Eles e elas, aqui, estão em sua casa. Casa de família onde se abrigam, cuidam, embelezam e gozam. Vida activa, para que esqueçam a sua condição marcada pela enfermidade para toda a vida.

Este desconhecimento da realidade e virtudes do Calvário ou a prevalência de interesses ideológicos ou de outra ordem, levaram a Segurança Social do Estado Português a inverter a missão para que foi criada: em vez de proteger as pessoas carentes de capacidade de autonomia e agregar o tecido social que as rodeiam, exercem clivagens que destroem equilíbrios conquistados, laços humanos e afectivos que a comunhão de vida produziu. Numa sociedade que se quer, cada vez mais, humanamente civilizada, realizam-se acções que nos fazem recuar no tempo civilizacional, a épocas em que a selva era o contexto em que se vivia. O que se passou no Calvário, com esta entrada e saída de rompante, sem olhos e gestos humanos, foi um regresso a esses tempos em que prevalecia a lei do mais forte e o homem era lobo do homem. Senão, vejam-se as consequências... Onde a dignidade humana e o respeito pela liceidade da vontade própria dos nossos doentes e de todos os que os rodeiam?

Foi há mais de sessenta anos que Pai Américo sonhou o Calvário. O Calvário nasceu, cresceu e desenvolveu-se como tudo o que é humano e obra humana. Mal tal qual nelas, se manifesta também imperfeição. Aqui no Calvário a mesma há-de ser entendida nesse contexto, e tratada com esperança e vontade de melhorar, nunca como objecto que tem de ser destruído, pensando que depois nascerá uma coisa nova e perfeita. Como?

No Calvário nunca faltou o que é essencial à vida e o que, em cada tempo, é disponível para o bem-estar e ser dos que nele habitam. No Calvário havia alegria em viver e paz nos corações. E agora? Incerteza, angústia, dor. É preciso reparar o mal que se fez e respeitar a dignidade de quem tem nele a sua casa e a sua família, numa vida social responsável que dá apoio aos mais frágeis e não a marginalização.

Padre Júlio