DA NOSSA VIDA

Já lá vão transcorridos 131 anos desde que Pai Américo nasceu e 62 desde que deixou o mundo. Nos seus quase 69 anos de vida, deixou na história um rasto indelével, marcados, especialmente, pelos últimos 27 de sacerdote e fundamentalmente nos 16 últimos que viveu. Foram estes os tempos da edificação da Obra da Rua, motivo que hoje nos congrega neste dia e lugar.

Passados, como dizia, 62 anos sobre a sua morte, ainda hoje continuamos a ver e a ouvir fortíssimos testemunhos sobre a sua Pessoa e Obra, muitos deles expressos de voz embargada e com lágrimas, sinais da verdade delas e da transformação que operou em milhares de vidas e, consequentemente, no conjunto da sociedade.

Quem fez da fome dos outros sua fome, não poderia mais que procurar saciar-se na justiça. É que a fome de todo o ser humano não é mais que a prova real da injustiça que campeia no mundo. Fome e sede de justiça roíam-lhe o íntimo, pelo que nada mais procurou que saciá-las saciando, pela sua palavra, presença e obras, os não amados, cumprindo o desígnio da sua vida: AMA.

O turbilhão da vida social em todas as épocas, apresenta-se sempre com a naturalidade do que tem de ser e com a bondade do que é melhor. Pai Américo, pelo seu olhar livre e justo, vendo tudo «às avessas», como costumava dizer, desvendava-lhe a cegueira e descobria-lhe os seus efeitos nefastos, contrapondo-lhes caminhos equilibrados de justiça e de verdade: «O pobre de quem eu me ocupo... não quer uma transferência de riquezas. O que ele quer é a justa e adequada distribuição delas». «Eu sou um revolucionário pacífico, um pobre que sangra, um pai que chora, um português que ama». «A verdadeira Revolução é levantar os prostrados e não deitar abaixo os que caminham».

A vida de Pai Américo seguia pelo caminho da cruz: «Sangro pelos pobres, nossos irmãos, para os aliviar. Choro a sorte dos farrapões das ruas e quero restaurar o que a sociedade estragou...». Alguns, que lhe estavam perto, interpretavam e liam admiravelmente os seus passos. Foi o caso do Padre Grilo, numa visita que lhe fez em Paço de Sousa, numa hora de Getsémani, como Pai Américo a qualificou e redigiu n'O GAIATO de 29/10/1944, sobre aquele encontro:

«Naquela tarde aparece uma visita. É o Padre Grilo de Matozinhos.

Subimos de braço dado a Avenida "Duarte Pacheco". Conversamos das obras, dos rapazes, de coisas.

— Sim, meu padre; Deus quere as Suas obras cheias de confusão, de trabalhos, de dor.

Sangue, suor, oração, são a argamassa divina das casas que se estão a levantar. É a sua cooperação. Despedimo-nos. Trazia muita paz. Deixou muita paz. A Paz do Senhor! Volte cá mais vezes, Padre Grilo.»

Horas de Getsémani foram acontecendo, a seu tempo, ao longo dos seus dias. Próximo já do final da vida, em consequência do tal turbilhão que envolve a vida humana no mundo, hora muito dolorosa, foi a perda do seu principal companheiro de trabalhos, fiel e amigo, que numa opção infeliz, resolve seguir noutra direcção, do que resultou a precoce separação da Obra da Rua da recentemente formada Casa do Gaiato dos Açores. Nos momentos decisivos não há ambivalência, mas uma opção clara e definitiva: «ou... ou...»

Por fim a morte: «sangue contra sangue», como ele a definiu. A marca dos heróis define-se no epílogo das suas vidas, onde se concentra a total disponibilidade por um ideal. Em Pai Américo este não foi um fim mas a mudança para uma nova realidade, um novo começo, uma nova forma de agir: «A minha obra começa quando eu morrer.»

Uma vida conduzida pelo amor ao próximo, imagem viva do bom samaritano do Evangelho, incarnando-o em palavras e obras, teria de merecer a aprovação de Jesus Cristo e dos homens, exceptuando a dos que passam ao lado.

Nestas mesmas pisadas seguiu a Obra da Rua o seu fundador, pelos anos fora, realizadas nos passos dos seus obreiros. Entre estes destacamos hoje o senhor Padre Baptista, o último padre da rua contemporâneo de Pai Américo entre nós, que dele recebeu a incumbência de concretizar a obra que a sua inquietação levou a sonhar - o Calvário, lugar de família e de paz para o doente incurável sem família nem lugar onde repousar a sua cruz: «Um lugar onde cada padecente leve, sim, mas não arraste a sua cruz dolorosa».

O seu novo livro, O Calvário (Páginas Escolhidas e Documentário Fotográfico), recebemo-lo como a terra recebe a semente, fazendo-a parte de si, e juntamente com ela produzir vida que se multiplica. O destino do homem é a vida, embora necessariamente passe pela purificação do que em si é morte. O Calvário é ajuda preciosa para esta redenção.

Padre Júlio