CONFERÊNCIA DE PAÇO DE SOUSA

UMA LIÇÃO TRÁGICA SOBRE O SIGNIFICADO DA PÁSCOA

Hoje em dia, para muitas pessoas, "Páscoa" é igual a "férias" e "divertimento" e mais nada.

Na tarde de Sexta-Feira Santa tivemos uma lição trágica sobre o que deve ser o significado da Páscoa. Nessa tarde fomos encontrar, depois de ter posto termo à vida, na casa onde morava, mas onde julgávamos que já não estava, há cerca de duas semanas, uma pessoa que acompanhávamos há já bastante tempo.

Deus manda-nos ter a humildade de nos perguntarmos onde poderemos ter aqui falhado, quer por acção, quer por omissão, mas Ele manda-nos, também, sabermos perceber as lições de sabedoria divina que devemos aprender nas situações com que nos vamos confrontando ao longo da vida. Ora há aqui uma lição sobre o que deve ser o significado da Páscoa, significado esse que vai sendo substituído por significados mundanos, mesmo numa sociedade com raízes cristãs.

A pessoa aqui em questão foi vítima de vários choques emocionais, ao longo da sua vida, que lhe deixaram feridas muito profundas, feridas essas incuráveis e que se encadearam e agravaram umas às outras, a última das quais muito provavelmente pouco antes dessa hora funesta em que pôs termo à sua vida.

Do primeiro desses choques, resultou uma dependência do álcool que, apesar de alguns tratamentos, o acompanhou até ao fim da vida. Desta dependência resultou a desestruturação da sua vida familiar. Também resultou uma situação laboral precária, precariedade essa que, por razões de que não interessa aqui falar, ele resistia a que fosse substituída por situações estáveis.

Cuidou-se de se lhe arranjar um alojamento condigno, sem pagar renda. Quando lá íamos, embora soubéssemos do desalinho em que estava o interior da casa, reflexo do turbilhão que devia ser o seu espírito, ou não nos abria a porta, ou quando a abria, deixava-a só entreaberta e atendia-nos na soleira da porta. Era como se traçasse uma linha vermelha que não podíamos atravessar. Respeitamos sempre isso. O que ele queria que nós víssemos era a sua atitude sempre afável, que não disfarçava uma profunda tristeza, e a camisa quase sempre lavada que colocava quando nos atendia. Mesmo para os seus estados de embriaguez, desenvolveu uma capacidade de os dissimular o mais que podia.

Pessoas assim têm muitas vezes quase nada com que se possam agarrar à vida. Esses tubinhos de soro que os alimentam são frágeis e podem-se entupir, ou romper a qualquer momento. Por vezes, só a própria pessoa os conhece e ninguém mais consegue descobri-los. Podem ser coisas materiais a que a pessoa se agarra, mas mesmo neste caso e noutros têm sempre que ver com sentimentos profundos que não é fácil conhecer e penetrar.

O problema está quando esse pouco com que a pessoa se vai agarrando à vida é vivido como se não houvesse mais nada para além disso e sem a perspectiva de fazer disso instrumentos para ajudar a vida de outros. É, possivelmente, por isso que, quando acaba esse pouco que estas pessoas têm para se agarrar à vida, também acaba a sua vontade de viver.

Nunca saberemos o que aconteceu no final da vida desta pessoa. O que sabemos ao certo é que, depois, de uma mão amiga lhe ter proporcionado uma situação laboral não precária que não resultou, essa mesma mão amiga proporcionou-lhe uma nova oportunidade. Era numa localidade fora de cá, com "cama, mesa e roupa lavada", mais a remuneração devida pelo trabalho que ia realizar. No dia a seguir a ter sabido desta oportunidade a pessoa ligou ao filho, dando-lhe conta, todo contente, deste seu novo trabalho. Esse telefonema foi duas semanas antes de Sexta-Feira Santa. Por isso, família, vizinhos que viviam porta com porta com ele e nós, todos o julgávamos nesse novo local para onde teria ido trabalhar, quando o que, de facto, aconteceu foi ele ter desaparecido, mas por ter posto termo à vida, muito provavelmente no dia a seguir, por razões que nunca iremos saber ao certo, mas que não foram essas da falta de trabalho, de rendimento, ou de alimento.

Na tarde de Quinta-Feira Santa fomos ao lugar onde essa pessoa cá morava ver um vizinho que também acompanhamos há bastantes anos. Esse vizinho, tal como nós e os outros vizinhos, davam essa pessoa como estando a viver e a trabalhar no tal novo local fora de cá. Por isso, nem sequer batemos à porta da casa onde ela cá tinha vivido. Foi na noite de Quinta Feira Santa que soubemos que, afinal, ele não tinha comparecido nesse novo local de trabalho. Por isso, era nosso propósito nessa Sexta Feira, ou no Sábado irmos voltar a procurá-lo na casa onde cá tinha morado. Esse nosso propósito foi apressado pelo alerta de um vizinho sobre indícios estranhos que lhe vinham dessa casa. Fomos a correr e chamamos a GNR que depois conduziu o resto das operações.

Nunca ninguém sabe o que se passa na alma de uma pessoa até ao seu último sopro de vida. Desta pessoa e do seu final de vida não queremos guardar a imagem do corpo que tivemos que reconhecer para a emissão da certidão de óbito, mas sim a imagem de um gato, com um lindo pêlo branco, que ele tinha trazido pequenino para casa, há cerca de um ano, e que criou desde então. O gato estava na soleira da porta da casa, quando lá chegamos nessa tarde de Sexta Feira Santa. O gato vai ser agora cuidado pelo tal vizinho que acompanhamos e que também teve uma vida de marginalização social.

Que este lindo animal a que ele carinhosamente deu vida e a brancura do lindo pêlo que o reveste sejam o sinal de que este nosso irmão possa ter encontrado uma passagem para a Vida Eterna, mesmo que tenha sido uma passagem muito estreita, muito dolorosa e muito nos últimos segundos da sua vida. Tal como no Calvário, com os que foram crucificados com Jesus, a mão de Deus está sempre estendida, até ao último momento da nossa existência terrena, para nos ajudar a fazermos bem a nossa última passagem, mesmo que seja no meio dos sofrimentos mais dolorosos, e qualquer que tenha sida a nossa história de vida. Para Deus somos todos iguais e somos todos Seus filhos. A todos nós Ele estende a Sua mão amiga, até ao nosso último sopro de vida. Queremos acreditar que foi assim com este nosso irmão. Queremos acreditar que, apesar do desespero e da terrível dor dos seus últimos momentos de vida, ele tenha conseguido ver e agarrar essa mão amiga que Deus lhe estendeu para o ajudar a fazer a sua última passagem. Queremos acreditar que Deus agora o tenha junto d'Ele, deixando atrás de si, como sinal disso para nós vermos, o lindo animal de cor branca que recolheu pequenino e ao qual carinhosamente deu vida, vida essa que, agora, outros cuidarão de continuar por cá.

É isto que a Páscoa deve significar para todos nós:

- ao longo da nossa vida, devemos ir ajudando a vida das pessoas e das outras criaturas que Deus vai colocando no nosso caminho;

- devemos fazer isso sem nos agarrarmos ao que é só deste mundo e que, por isso sempre acaba;

- se assim fizermos, quando chegar o último momento da nossa existência terrena, estaremos com a alma e com as mãos livres para podermos agarrar a mão amiga que Deus nos estende para fazermos essa última passagem para a vida Eterna;

- o sinal que fica neste mundo dessa nossa eternidade é essa vida que ajudamos a dar às pessoas e às outras criaturas que por cá ficam quando partirmos e que caberá a outros continuar.

Américo Mendes