CONFERÊNCIA DE PAÇO DE SOUSA

"FOI A PRIMEIRA VEZ QUE NÃO ME TRATARAM COMO SE FOSSE UM ANIMAL!" — Não resisto a reproduzir aqui uma história de vida admirável que li há dias num jornal dos Estados Unidos de grande circulação, mais precisamente o Washington Post. Não é, pois, algo que tenha acontecido na nossa Conferência, mas nesta história há elementos que, no essencial, são semelhantes a um tema que tem sido recorrente nestas crónicas, mas já lá vamos.

A história é a da vida de um senhor, agora com 51 anos, nascido no Uganda, perto da fronteira com o Ruanda. A sua família era muito pobre, ao ponto de não conseguir evitar que alguns dos seus membros morressem à fome. Aos 10 anos de idade saiu de casa para lutar pela sua sobrevivência na condição de sem abrigo. Um dia viu um senhor idoso a levar para casa, com muita dificuldade, o saco das compras. Foi ajudá-lo e como recompensa o senhor deu-lhe de comer. Daí em diante, passou a ajudar desta maneira esse idoso sempre que o via nessa situação.

Isto durou cerca de ano e meio até que o senhor idoso resolveu ajudar o rapaz sem ser só dar-lhe de comer. Arranjou a que ele ingressasse numa escola com internato. O rapaz lá fez os seus estudos. Dessa escola passou para a universidade do seu país onde obteve uma licenciatura. Depois disso foi fazer mais estudos em Londres e de lá foi para os Estados Unidades onde obteve um mestrado em Teologia.

Nos Estados Unidos viu crianças a esbanjarem comida que teria salvo a vida dos seus familiares que morreram à fome, mas também viu crianças a passarem muito mal. Tomou, então, a decisão de se dedicar inteiramente ao apoio a crianças em risco, como colaborador de organizações nesta área, a que juntou a adopção de algumas delas. Até agora foram mais de 40 as crianças que adoptou, umas agora adultas que continuam a chamar-lhe pai e outras que estão com ele até surgir uma situação em que possam continuar a sua vida com dignidade.

Veja-se todo o bem que tem acontecido depois do "pequeno" gesto do rapazito de 10 anos, sem abrigo, sem mais para dar aos outros a não ser ajudar um idoso a levar para casa o saco das compras, mas não foi só isto que então aconteceu. Também houve a atitude do senhor idoso que olhou para este rapazito como um ser humano, não o tratando de forma desumana como fazia a maior parte das outras pessoas. Reproduzindo as palavras da pessoa aqui em questão, "foi a primeira vez que não me trataram como se fosse um animal!", aqui com a ressalva de que os animais também devem ser tratados com amor.

Muitas vezes nas actividades vicentinas e noutras que tais parece que o que se faz é muito pouco e pequeno de mais para combater os muitos e grandes problemas sociais que assolam o mundo. Para algumas pessoas tal situação pode levá-las a achar que essas "pequenas" actividades não valem a pena. Quem deve ter a responsabilidade essencial na resolução desses problemas é o Estado e outras entidades que têm os recursos financeiros e a obrigação legal de o fazer. Claro que o Estado e outras entidades com grandes responsabilidades sociais têm recursos e têm obrigações neste domínio e devemos sempre clamar para que cumpram com estas obrigações. Isto, no entanto, não dispensa nenhum de nós de fazer sempre tudo o que estiver ao nosso alcance para ajudar o próximo, por mais "pequeno" que esse nosso gesto possa ser. Isto começa por olhar para as outras pessoas como seres humanos, qualquer que seja a sua condição, coisa que parece que anda por aí a faltar em jovens e adultos que tratam outras pessoas com palavras e actos de violência.

Américo Mendes