CONFERÊNCIA DE PAÇO DE SOUSA
DE NOVO, SOBRE A PARTILHA E O MILAGRE DA MULTIPLICAÇÃO DOS PÃES — Regresso a estas crónicas depois de algumas semanas em que não foi possível escrevê-las, a tempo e horas. Faço-o voltando a um tema sobre o qual acho que já aqui escrevi várias vezes: o meu entendimento sobre o que me parece essencial no Milagre da Multiplicação dos Pães. Isto voltou-me à ideia com o Evangelho de Domingo passado. Não resisto a tratar o assunto outra vez porque ele está no cerne do ser-se cristão das múltiplas formas em que o podemos todos ser, incluindo através da acção vicentina.
Tendo poderes divinos, Jesus pode muito ter feito surgir do nada os pães e os outros alimentos que eram precisos para saciar a fome daquelas cinco mil pessoas que o seguiram para ouvir a sua mensagem.
O meu entendimento sobre o que acho essencial nesta passagem da vida pública de Jesus não é incompatível com essa acção sobrenatural de Jesus, mas não vai por aí. Jesus não nos pede para fazermos coisas sobrenaturais que só os seus poderes divinos conseguem. Jesus também não fez o que fez nessa altura para que as pessoas o vissem como um rei com poderes sobrenaturais. No relato deste acontecimento no Evangelho de São João diz-se mesmo que, mal Jesus se apercebeu que as pessoas viriam ter com ele para o fazerem rei, retirou-se sozinho para o monte.
O que Jesus nos pede para fazermos e o que quis incentivar aquelas cinco mil pessoas as fazer é algo que não é nada sobrenatural e que, por isso, estava ao alcance delas e também está ao nosso alcance: partilharmos com as pessoas que forem o nosso próximo em cada momento da nossa vida o que tivermos, seja muito ou seja pouco, e que lhes faz falta para poderem viver uma vida condigna. Na situação do Milagre da Multiplicação dos Pães foi partilhar comida com quem tinha fome, mas pode ser partilhar uma enorme variedade doutras coisas: partilhar o nosso tempo conversando e dando atenção a quem precisa de companhia e está sozinho, partilhar conhecimento com pessoas com quem trabalhamos, partilhar espaços de trabalho com quem também precisa deles, etc., etc.
Repare-se que o Milagre da Multiplicação dos Pães não começou com Jesus a fazer surgir do nada os alimentos que eram precisos para alimentar aquelas cinco mil pessoas. Esse milagre começou com Jesus a perguntar aos seus discípulos se naquela multidão alguém tinha trazido alguma coisa para comer. Eles responderam-lhe que um rapazito tinha trazido cinco pães de cevada e dois peixes. Foram estes pães e estes peixes que não surgiram do nada, mas sim da disponibilidade para a partilha por parte desse rapazito que tinha trazido esses alimentos para si, que Jesus deu o exemplo a ser seguido pelas outras pessoas que lá estavam: partilharem também com outras que tinha fome o que tivessem trazido para comer.
Esse exemplo foi seguido por muitas. O resultado foi que a comida chegou para todas e ainda sobrou.
Se todos, ou, pelo menos, muitos fizéssemos isto haveria muito menos pobreza e muito mais paz no mundo. Há pobreza e há guerras nas famílias, nos locais de trabalho, dentro dos países e entre países porque não há partilha: uns querem só para si e que pode e deve ser partilhado com outros.
Partilhar não é fazer algo de sobrenatural e que, por isso, está para além das nossas capacidades humanas. Partilhar seja o que for que estiver ao nosso alcance é algo que podemos e devemos fazer. O que, não sendo sobrenatural, exige um esforço muito grande e, por isso, há muito menos partilha do que a que seria necessária, é que partilhar custa muito. Custa muito abdicar do nosso tempo para darmos atenção a outras pessoas que precisam dela. Custa muito abdicar de conhecimentos que temos para trabalharmos verdadeiramente em equipa com outras pessoas. Queremos ter um gabinete de trabalho só para nós em vez de partilhar espaço com outras pessoas. Custa muito abdicarmos de algum do nosso dinheiro e doutros bens para com eles ajudar pessoas a quem isso faça falta. Podia continuar esta lista de exemplos, mas sabemos todos muito bem, porque já todos experimentamos isso, que custa muito partilhar com outros aquilo que é nosso, ou que queremos só para nós. Não custa "partilhar" o que nos sobra, ou que íamos deitar ao lixo. Isto não é verdadeira partilha. O nosso próximo não deve ser o nosso "caixote do lixo". O que custa muito é partilhar com outros aquilo de que também precisamos, mas que pode e deve ser dividido com outros, sem que, por isso, deixemos de ter uma vida condigna.
Neste período dito de férias onde há muitos incentivos para fazermos o contrário da verdadeira partilha, lembremo-nos todos do Milagre da Multiplicação dos Pães neste entendimento que eu aqui quis recordar.
Américo Mendes