CENTENÁRIO DA MATRÍCULA DO P. AMÉRICO NO SEMINÁRIO DE COIMBRA (1925-2025)

Caridade, acção e lucidez na obra do P. Américo Monteiro de Aguiar

Continuação do número anterior

3. Caridade, acção e lucidez

No título da intervenção que anunciei, dizia que se tem de começar pela caridade. O que significa começar pela caridade? Significa começar pela acção. Ora a acção é várias coisas. Primeiramente é práxis. Práxis não é fazer coisas. Práxis é recuar até ao ponto em que a vida divina se faz vida do sujeito. Esse ponto existe? Sim, mas não consiste na nossa boa vontade. Consiste em algo anterior a isso. Muitas vezes, levamos a vida toda para lá chegar. O P. Américo andou de experiência fracassada em experiência fracassada até lá chegar. Aquilo que ele chama "a martelada" que o acordou, creio que se refere a isto. O mesmo aconteceu a Paulo de Tarso, a Agostinho de Hipona, a Teresa de Ávila, cada um a seu modo.

O caminho da práxis é um caminho de sofrimento, de inadaptação temporária, de confusão, de dor, às vezes de desespero. Normalmente as pessoas falam pouco desta faceta das suas vidas. Américo também fala pouco. Mas uma vez acontecida, aí começa a verdadeira vida do sujeito, a experiência de si, a evidência fulgurante do divino. Um fanático nunca lá chega nesta vida.

Do ponto de vista da fé, a caridade é a experiência da vida em Cristo. Reparemos que a experiência da vida em Cristo não apenas nos liga a Deus, mas liga-nos a nós mesmos. É experiência terapêutica. É um ganhar de confiança. Um adormecer e um acordar, ao meso tempo. É o momento em que a vida do sujeito e a vida divina coincidem. É o momento em que a vida divina se torna real na existência imanente do sujeito. Não é a experiência do esforço e da complexidade, mas a experiência da simplicidade e da paz. O Reino está muito próximo de todos. Nós é que nascemos e vivemos longe dele. E caminhamos longe dele por numerosos anos, normalmente.

A caridade é práxis, pois é a experiência serena do repouso sobre a força da vida antecedente. É paz, pois o shalom divino sintonizado, esse shalom que Deus faz esforço para colocar diante de todos os seres humanos, até os despertar.

Américo vagueou, lutou, sofreu até encontrar. Mas no termo, a sua vida tornou-se de uma segurança serena, de uma confiança na bondade do ser humano, numa mão estendida que fez milagres entre tantos e tantas que, desde a sua lonjura se aproximaram e viveram essa experiência compartilhada.

Mas a experiência humana, tal como a vê o cristianismo é também poiesis, quer dizer realização de obras. A práxis deu ao P. Américo uma grande capacidade de levar por diante tantas obras visíveis, de uma grande eficácia, de uma resistência e de uma endurance que ainda hoje nos fazem admirar. Ele não era um homem de acção, no sentido mundo da expressão. Era um fenómeno de confiança na vida. Esse é o Segredo da sua eficácia e da sua confiança nos outros, sobretudo dos seus gaiatos, tanto quando os ganhava como quando, dolorosamente, os perdia. Era também daqui que lhe vinha a competência para criar, para imaginar, para escrever, para garantir a eficácia das suas obras.

Era também daqui que lhe vinha a lucidez. A lucidez, no sentido que a utilizo aqui é sinónimo de sabedoria prática, de prudência (phronesis), para decidir, para avançar ou para recuar, para rever, para arrepiar caminho, quando era o caso. Daqui lhe vem o seu génio de escritor, um escritor sem diletantismo, mas que capta a vida, a sua e a dos outros, no seu lugar fontal e não nos lugares de vaidade e de barbárie no meio dos quais vivemos hoje, como se vivia no tempo dele.

4. Que retrato posso fazer dele, neste centenário da sua carreira de teólogo?

Ele foi um fruidor da vida. Os "aguiares" de Galegos eram homens que bailavam nas festas, comiam alegremente o pão das suas colheitas e bebiam o vinho das suas adegas fartas. Era esta a imagem que dele tinha o Bispo Barbosa Leão, natural de Parada, que não viu com bons olhos a vocação do candidato ao Seminário do Porto. Para mim, esta é uma definição muito acertada do carácter de Américo Aguiar. Não é um defeito. É uma virtude. Ele conservou-a por toda a vida. Mas, a partir de certa altura, quase não tinha tempo para isso e não o lastimava. Lembro-me do testemunho do Senhor Manuel Cunha, do Espelho da Moda, essa Casa de Betânia que ele frequentava um dia cada semana e onde saboreava com prazer a comida que sabiam que ele gostava, onde coroava as refeições com o fumo do seu tabaco preferido. Isto é vida contemplativa no seu melhor. Fruir é a definição agostiniana da vida da graça. Deus é para fruir. As coisas são para usar. Esta hierarquia de valores foi o centro da espiritualidade do P. Américo. A alegria com que descreve os dias de lavoura e de vindima, em Paço de Sousa, a refeição que partilhava com os seus gaiatos, só tinha paralelo com a fruição da eucaristia e com os momentos de solidão que fruía diante do Santíssimo. Não me lembres o mundo! Ele era de Jesus, não do Baptista como por vezes o fazem. Quando começou a fruir a proximidade com o esposo divino, viveu apaixonadamente e serenamente a vida do céu nos caminhos do Porto e nos outros.

Ele foi um impelido. Ele foi o exercício da piedade (não sou padre de bênçãos). ele foi um antecipador, o que lhe dava a imagem de um inadaptado.

A sua vida é compreensível à luz da incarnação, mais do que da paixão. A sua vida foi uma expansão à volta do mistério central da incarnação do Verbo. Viveu dos sentidos e do sensível. A nossa carne só é pensável a partir da incarnação. O seu dinamismo não lhe vem de si mesma, mas do Espírito. Só assim se explicam os nossos sentidos e todo o sensível. A propósito do P. Américo, podemos dizer com precisão que a carne de Cristo brilhava no seu rosto, a palavra vibrante de Cristo é que dava vida ao seu sermão, a competência gratificante da mão de Cristo é que lhe guiava a pena com que escrevia, o braço de Cristo dava calor ao braço com que abordava e abraçava toda a miséria dos seres humanos para que saíssem dela pelo seu pé.

Padre Jorge Cunha

4 de Outubro de 2025