CASA DO GAIATO DE MALANJE

Na semana passada, a propósito de uma encomenda de portas que fizeram na carpintaria da Casa do Gaiato de Malanje, efetuei uma chamada junto dos carpinteiros com o Padre Rafael, para validar um orçamento e gerir os prazos de execução. Embora a gestão estando orientada por um rapaz, o Nando, que estuda radiologia, e um funcionário, o Gaby, a ajuda do Pai da casa é fundamental, para que todo o processo seja educativo e não apenas económico e industrial. O que mais me espantou foi a alegria que notei no Tio Bezerra, mestre carpinteiro, ao ouvir do hemisfério norte a voz do Padre Rafael, o seu português com sotaque castelhano, a sua fala a sorrir. Uma comunicação palpável.

É certo que a casa são os rapazes, os que vivem agora e os que saíram há pouco; os antigos gaiatos; os colaboradores; os funcionários; mas a alma de todo este corpo é o Pai. Aqui sente-se a presença do Pai, seja o Telmo, no espanto do Sabu que diz esta mangueira foi plantada no meu tempo (há trinta anos) e escolhida pelo mais velho, referindo-se ao fundador; seja a presença do Pai Rafael, na evocação de tantos que trazem as suas preocupações e problemas e que sempre encontram uma mão amiga e unida naquele que agora orienta a casa. Muitos continuam visitar a casa e perguntam quando regressam eles.

A vida é sempre um regresso nunca acabado, como afirmou Daniel Faria no poema Charles de Foucauld, na obra Homens que são como lugares mal situados [Fundação Manuel Leão, 1998]; não retorno ao lugar que nos acolhe e, para tantas crianças angolanas, recolhe das periferias de muitas existências fraturadas, ignoradas, exploradas pelo orgulho humano em não sentir a cor do próximo. Morreremos mártires, como profetizava o poeta.

Em tempo sabático, que a Diocese do Porto generosamente me concede, tenho a oportunidade de conhecer estes viveiros de homens em sementeira. O mais difícil é despirmos os nossos preconceitos, as nossas certezas, as nossas verdades, as nossas histórias, o nosso empreendedorismo. O impossível, mesmo, é não nos sentirmos nus diante de tanta miséria espelhada no rosto de uma criança que nos diz tenho fome, como o outro dia me sussurrou o pequenino batatinha Mário, a lembrar o grito de Jesus na cruz, tenho sede. Respondi ao menino, oferecendo-lhe uma goiaba que perfumava o escritório que ocupo na casa mãe e que os mais pequenos recolheram da viagem dominical que fizemos à Carianga. É preciso conhecer para um dia decidir.

Se há escrito do novo testamento que faz sentido por aqui é a parábola do trigo e do joio (Mateus 13, 24-30; 36-43), que se aplica na íntegra ao processo formativo destas crianças e jovens, tantas vezes esforçadas em crescer, mas que o mal teima em manter reféns de estruturas e métodos sub-humanos em países em vias de desenvolvimento. Países pobres na sua riqueza natural e humana. Riqueza de que apenas alguns poderosos beneficiam; pobreza que apenas alguns missionários amam, como lembra o Papa Francisco na Laudato Si.

Alguma vez limpo as lágrimas do Luizinho. Aquela torrente é expressão de uma rixa com um dos rapazes mais velho e mais forte. Mas também é verdade que junto da escola escutei a Flor, dizendo-se vítima de uma pedra desgovernada e que o mesmo Luizinho tinha posto em movimento aéreo.

E eu não tenho vontade de chorar e isso preocupa-me e distancia-me. E não tenho o sorriso do Luizinho, na foto, qual pequeno David a matar os Golias desconhecidos e que as faltas não impedem de continuar a viver.

Padre José Alfredo