CALVÁRIO

                              Estar enraizado é talvez a necessidade 

mais importante e menos 

reconhecida da alma humana.

Simone Weil


A vida no Calvário segue o seu ritmo dia-a-dia. Trabalhos e descanso. Sociabilização e espiritualidade. Alguns dos rapazes, com monitores que acompanham as suas tarefas, vão desenvolvendo actividades pedagógicas, sobretudo no contacto com a natureza vegetal e animal. É o tempo das colheitas: a vinha, o milho, alguma fruta. As uvas foram vendidas a uma adega. Do milho foi feito silo para alimento dos bovinos e vamos tirar alguma espiga para as aves, os coelhos e os porcos. Aproveitaremos também a palha. A Casa do Gaiato de Miranda enviou-nos fardos de aveia.

Limpamos as matas, com auxílio de uma empresa externa, e estamos a embelezar os jardins para que a reabertura do edifício reabilitado seja pronta e bela. Recolhemos muita madeira, uma para estilha outra para a lareira, até teremos lenha para vender, assim haja interessados. Ainda nos falta limpar o terreno onde está o Campo Santo, que limpamos aquando do funeral da Maria do Carmo. Fizemos abate de pinheiros que poderiam ameaçar alguma casa vizinha… Serão desfiados em tábuas para uso futuro na carpintaria.

Aos trabalhos do início do Outono seguem-se os que se avizinham em plena estação que antecede o Inverno. Limpar os campos, semear os legumes do tempo frio e húmido e preparar terras, quer para a plantação da vinha na avenida quer a plantação do novo pomar.

A tudo isto junta-se o final das obras, especialmente na remodelação da cozinha, indispensável para o licenciamento do edifício que acolherá os doentes. O pedido de vistoria das entidades competentes já seguiu o seu percurso administrativo. A Câmara Municipal vai convocar as outras entidades — Instituto da Segurança Social, Protecção Civil e Delegação de Saúde — para uma visita e avaliação de conformidade entre o projecto e o edificado. Já há saneamento público e estamos em condições de testar todo o edifício. Um processo complexo e demorado, até pela compra das Águas de Paredes a uma empresa privada e a consequente nacionalização do serviço, agora gerido pelo município.

Paralelamente segue o trabalho da Procuradoria-Geral da República que nos quer ouvir em contexto de Tribunal Judicial — Juízo Local Cível — da Comarca do Porto sobre o regresso dos doentes que saíram para se realizarem as obras. Temos ido a várias audiências a Tribunal prestar declarações sobre todo o processo e declarar a intenção do Calvário de que os doentes retirados regressem, procurando assim sarar feridas profundas e alimentar um diálogo institucional, quer com estes serviços públicos quer com os lares que os receberam e acolhem neste momento.

Os nossos cuidadores têm sido inexcedíveis na dedicação e por isso mesmo estamos agradecidos. Faremos com eles formação na área dos primeiros socorros e também da higiene e segurança no trabalho.

Temos sido atendidos nos pedidos que temos feito para a aquisição de um transporte de doentes não urgentes — carrinha adaptada ao transporte com cadeiras de rodas — e de um trepador, que faça subir os doentes na escadaria da Capela-Espigueiro. Que dizer a tanta generosidade? Obrigado. Deus abençoe quem dá discretamente.

Ainda assim há que ajustar tudo isto ao cuidado diário com os doentes, especialmente a ida às consultas, aos exames, às urgências, as cirurgias, à fisioterapia, aos cuidados de enfermagem na instituição e nas USF, a higiene e a alimentação… também as visitas de familiares e amigos.

Breve seremos recebidos pelo Instituto da Segurança Social para ultimar o licenciamento e estudar a possibilidade de cooperação no trabalho que fazemos, procurando que os direitos dos doentes sejam garantidos no contexto do diálogo da Igreja com o Estado. Queremos cumprir a Lei Geral onde nos inserimos para que nos seja permitido cumprir a Lei do Evangelho que nos propomos desde a intuição da fundação deste lugar por Pai Américo no distante ano de 1954 e a sua realização pelo Padre Baptista ao longo de seis longas décadas. Um trabalho pioneiro que precisa de ser estudado e apresentado com toda a metodologia associada. Trabalhamos um regulamento interno e também estamos a desenhar o modo dos doentes continuarem a contribuir para a vida da casa, seja materialmente com o que recebem de pensões e prestações do Estado seja com a sua vida valiosa e que cumprem em pequenos gestos de caridade e atenção mútua.

E há os outros doentes de quem nos chega o pedido de acolhimento e a visita que fazemos para verificar as necessidades e muitas vezes as condições infra-humanas onde vivem, como o Senhor José que visitámos, bem perto de nós, no passado sábado! A ver se lhe deitamos a mão! Ele perdeu uma perna… e vive num primeiro andar de um armazém industrial!

Uma palavra final para o contínuo trabalho de alguns voluntários — residentes ou transeuntes — que continuam a garantir estabilidade familiar desta Casa, um dos pilares sólidos da Obra.

Vamos estudar a possibilidade de reabilitação da casa-mãe, dos jardins e passeios exteriores, bem como redesenhar outros espaços para acolhimento de futuros doentes com a necessária manutenção do edificado. Construir no construído, como diria o grande arquitecto espanhol Rafael Moneo, aquando do seu projecto Museu Nacional de Arte Romana de Mérida!

São raízes em movimento perpétuo e oculto, mas eficientes, que importa não deixar secar totalmente. O que é visível importa limpar cuidadosamente e dos frutos antigos, que devemos saber recolher, aprender a plantar com novidade.

Padre José Alfredo