
CALVÁRIO
Os cristãos não se distinguem dos demais homens, nem pela terra, nem pela língua, nem pelos costumes. Nem, em parte alguma, habitam cidades peculiares, nem usam alguma língua distinta, nem vivem uma vida de natureza singular. Nem uma doutrina desta natureza deve a sua descoberta à invenção ou conjectura de homens de espírito irrequieto, nem defendem, como alguns, uma doutrina humana. Habitando cidades Gregas e Bárbaras, conforme coube em sorte a cada um, e seguindo os usos e costumes das regiões, no vestuário, no regime alimentar e no resto da vida, revelam unanimemente uma maravilhosa e paradoxal constituição no seu regime de vida político-social.
Habitam pátrias próprias, mas como peregrinos: participam de tudo, como cidadãos, e tudo sofrem como estrangeiros. Toda a terra estrangeira é para eles uma pátria e toda a pátria uma terra estrangeira. Casam como todos e geram filhos, mas não abandonam à violência os neonatos. Servem-se da mesma mesa, mas não do mesmo leito. Encontram-se na carne, mas não vivem segundo a carne. Moram na terra e são regidos pelo céu. Obedecem às leis estabelecidas e superam as leis com as próprias vidas.
Carta a Diogneto, Autor Anónimo. Editora Alcalá. 2001
Aproxima-se a primavera e com ela a possibilidade de res- suscitar. O Calvário é uma palavra sobre essa possibilidade. Desde a saída do Padre Baptista, depois de mais de seis décadas dedicado aos doentes (esperamos um dia poder cuidá-lo, se assim for necessário); depois da saída de alguns doentes para outras instituições, que estamos a tratar que regressem; depois das obras em curso na CASA VITÓRIA, que estão a terminar; depois de tudo isto o que nos espera? Aguarda-nos a Espera de Deus, como refletia Simone Weil nas cartas escritas em 1942, evoluindo de um estado de agnosticismo existencial para uma experiência mística de compromisso social anti belicista. O Calvário significa o lugar de passagem do abandono ao recolhimento.
O ISS — Instituto da Segurança Social está em visita ao Calvário em ordem ao licenciamento de utilização da Casa, construída, ao tempo, com a generosidade de muitos que visitando os incuráveis e marginalizados da sociedade não podia fechar as mãos e o coração. Não podiam enganar o olhar e dizer que nunca viram a miséria humana e a caridade cristã.
Vivemos numa sociedade legisladora de todos os âmbitos da vida humana. Legislação que precisamos de conhecer e cumprir. Legislação que maiorias simples ou absolutas no Parlamento ditam e transcrevem no Diário da República. A coisa de todos. Também nós queremos juntar alguma coisa ao que é de todos, com o risco de, se não o fizermos, trairmos a nossa consciência, liberdade e iniciativa.
A nós cumpre aprender, dialogar, respeitar e… sim, creio que para podermos cumprir a Lei do Evangelho precisamos de cumprir a lei da nação!
Ao Calvário pedem-nos um regulamento interno e um contrato de prestação de serviços aos doentes. Temos de os apresentar e vamos apresentar. Com a verdade de que os doentes são os proprietários do Calvário. As casas, os terrenos, os animais e uns aos outros pertencem-lhes. Pergunta-me o Sérgio Manuel: — Padre Alfredo, quando chegam os nossos tractores? Ele sabe que mandei fazer-lhes uma revisão profunda.
Têm direitos que o Estado e a Igreja procuram fazer valer e sentem obrigações que um dever cumprido, um sentar à mesa, um sinal da cruz traçado sobre o próprio corpo são provas eloquentes de um juízo moral. Mesmos para pessoas com debilidade mental e física.
Como ultrapassar o preconceito social da mentalidade pós-moderna de que uma ideia de bem-estar individual é sinal de realização humana e social? Como refere o Papa Francisco em entrevista a ANDREA TORNIELLI e GIACOMO GALEAZZI (Bertrand Editora, Lisboa 2016) há princípios económicos que matam. O diálogo significará crescimento em conjunto e iluminação de uma realidade maior a partir de pequenas luzes, como tem sido sempre o Calvário.
Há um longo caminho a percorrer, se queremos respeitar a vida de muitos desrespeitados ao longo das suas existências. Não são soluções decalcadas que farão bem ao Calvário e aos seus doentes. O Calvário é um sacramento que pode iluminar outras realidades sociais a precisar de intervenção eclesial e estatal, também não pode ser imitado sem mais, nem se pode repetir ad aeternum.
Temos de encontrar um justo equilíbrio entre o que o Estado nos seus serviços e profissionais nos obriga a cumprir e aquilo que o convívio humano com doentes, no espírito do Pai Américo, nos exige e que não devemos abrir mão.
Temos a juntar a este processo o desejo de conhecer e visitar outras realidades que em outras latitudes promovem a humanização e a sociabilização também a partir da Lei do Evangelho e do diálogo com a Sociedade, nomeadamente Cotolengo, Troly, Serviço de Cuidados Paliativos do CHSJ, Compassio e outras.
Uma sociedade integradora, como a que todos queremos, não pode apenas vender serviços, tem de contar com os que aparentemente não têm nada a juntar. Tem que evoluir em termos conceptuais e nas suas concretizações realistas.
Padre José Alfredo