CALVÁRIO

Há no trabalho manual e em geral no trabalho de execução, que é o trabalho propriamente dito, um elemento irredutível de servidão, que nem mesmo uma perfeita equidade social apagaria. É o facto de ser governado pela necessidade, e não pela finalidade. É executado devido a uma necessidade, e não tendo em vista um bem; «porque é preciso ganhar a vida», como dizem aqueles que nele passam a sua existência. Providencia-se um esforço, no final do qual, sob todos os aspectos, não se terá outra coisa senão aquilo que se tem. Sem este esforço, perder-se-ia aquilo que se tem.

Simone Weil, Condição primordial de um trabalho não servil (1942). Reedição, Paulinas, 2022.


Em Beire, além dos doentes do Calvário, permanecem cá nove adultos com necessidades especiais, alguns dos muitos rapazes que o Padre Baptista acolheu durante décadas nesta Casa do Gaiato, e que a idade não faz desaparecer as capacidades humanas invulgares para seres diminuídos.

A pedagogia deste lugar, natural e teológico-evangélico, sempre os deixou em contacto com a natureza humana e a natureza animal e vegetal. Com a orientação de colaboradores responsáveis pelas áreas agrícola e pecuária, eles desenvolvem uma série de pequenas tarefas de apoio a essa actividade laboral de suporte para a sustentabilidade da Casa.

O que espanta, apesar de em algum momento a conflitualidade saltar, é o sentido de participação na vida deste lugar. O que é cuidado e cultivado é nosso - dizem! Com propriedade. Não que tenham o sentido da posse jurídica dos prédios rústicos, dos animais ou das alfaias agrícolas. Mas sabem que lhes pertencem e eles e a esse contexto. A nossa casa, os nossos animais, os nossos campos, enfim, a nossa vida!

É um trabalho que não tem valor, por isso não é remunerado! Vale a identidade de cada um e isso não se pode medir ou avaliar. É um serviço de servidores de uma comunidade especial e familiar. Uma realização humana e cristã, uma participação menor que torna, sem dúvida, a criação maior. Aqui percebemos a beleza das coisas criadas e recriadas, porque a continuidade da criação exige participação humana. Seja ela qual for, tenha a necessidade que tiver.

E tudo isto tenderá a um fim. Sim. Um dia esgotar-se-ão as forças, as capacidades e as limitações limitarão definitivamente. Por isso em Beire há tempo para o descanso retemperador, para o convívio humanizante e para a contemplação das folhas que caem, das sementes que germinam, das pessoas que passam ou nos visitam. Gentes com nome e biografia. Também este é um trabalho. Espiritual. Verdadeiro. Um derradeiro esforça de compreender o mistério de Deus e o ministério dos outros. Os que com o seu trabalho remunerado ou voluntário servem estes pequenos grandes servos do criador.

No contexto do exercício do seu ministério, quando anunciou a nova economia da salvação, perante alguns que se opunham à revelação e tendo como cenário a sacralidade do sábado e a cura de um enfermo em Betsaida, Jesus afirma: Meu Pai trabalha até agora e eu também trabalho (Evangelho de João 5, 17).

Não podemos perder os que temos connosco e entre nós como reveladores de uma humanidade ferida, mas que procura o valor da sua existência redimida. Sempre num ritmo que não cansa nem se cansa.

Padre José Alfredo