
BEIRE - Flash's
Assassinos de boa fé...
1. Minhas "memórias" de Pai Américo… Não sei se foi crónica n'O Gaiato ou se foi carta a algum amigo. Sei é que aquilo me ficou gravado e, volta e meia, escorre como uma nascente de água viva… E gosto de ligar isto a uma outra passagem da sua vida em que ele se queixa de cartas anónimas a acusarem-no de "comunista hipócrita"… — Você é dos nossos. O que lhe falta é a coragem para tirar essa batina e mostrar quem é. A sua doutrina é a nossa doutrina…
Gosto de andar aqui, perdido no meio disto tudo, como quem observa, e registar o que mais me desperta. Sempre tenho que fazer e, muitas vezes, me encontro com P.e Baptista: — (…) mais que uma escola, isto é uma universidade!... E sinto pena que as «universidades» invistam tanto no apanhar o «por fora» e sejam tão parcas em descobrir o «por dentro» — aí onde sempre se esconde o melhor, a melhor versão de cada um e de cada coisa…
Alguém escreveu a Pai Américo a querer ensinar-lhe como é que deveria ser o jornal «O Gaiato» — dada a projeção que ele já estava a alcançar: — (…) devia contratar grandes nomes do jornalismo para colaborarem consigo. Artigos de fundo a afrontar esses grandes temas que o preocupam, porque são a causa da nossa penúria nacional… Partilhando isso com seus amigos e leitores, Pai Américo dava-nos a sua leitura: — (…) Esse jeito de pensar seria a morte d'O Jornal. Assassinos de boa fé!... Nós nascemos para os pobres e os de coração simples — porque só eles entendem os pobres… Não somos letrados nem Deus nos chama por aí. Seria a morte…
2. «Impossível ensinar a quem acha que…». Porque muito os amo, não me canso de repetir o que os meus olhos não se cansam de ver. Aquela ideia de Pai Américo de que também o Calvário poderia testemunhar a eficácia do modelo das Casa do Gaiato encanta-me. «Obra de doentes, para doentes, pelos doentes». E volto a P.e Baptista que tornou visível o sonho de Pai Américo — é tudo uma questão de criar rotinas…
Desde há dias que ando de olhos postos no Ricardo (o Riki). Sofre de um autismo tão acentuado que nos é muito difícil estabelecer com ele uma relação de diálogo lógico. Tudo tem de ser a nível emocional — cativar e inculcar nele o que vai de encontro às suas capacidades e necessidades, aqui no seu papel dentro da Comunidade. Mário, esperto e já bem calejado na relação com este tipo de pessoas com deficiência, escolheu-o para seu «ajudante de campo» — ir com ele, na carrinha, para carregar e descarregar as ofertas com que os supermercados cá da porta nos vão brindando. Coisa que tem um importantíssimo papel na gestão e economia desta instituição.
Ricardo afeiçoou-se-lhe. E, porque o Mário também bota uma mãozinha no transporte da comida da cozinha, lá em baixo, para o refeitório, cá em cima, Riki, chegada a hora das refeições, põe-se ali à coca e, quando vê o Mário, carregado com as panelas ou os tachos, sair da porta da cozinha, Riki corre a abrir a porta da sala de serviço ao refeitório. Mas, antes, arruma as cadeiras que possam ser obstáculo à passagem do Mário — que vem sempre a escaldar-se…
Registei isto no Riki. Mas, mutatis mutandis, bem podia registar comportamentos semelhantes em todos os outros. Aliás, já aqui tenho falado disso. Lembro o Carlitos a regar uns carvalhos que o Mário plantou, vai já para quatro anos… O segredo está sempre em cativar e descobrir aquilo de que aquela pessoa, na sua circunstância, ainda é capaz de aprender a fazer. E saber esperar até que a rotina se instale… Mas isto é «impossível ensinar a quem acha que já sabe». "Sabe" que não se pode pôr estes doentes a trabalhar…
3. Mas, afinal, quem são os "assassinos"?!... In illo tempore, gostei da cadeira de Introdução ao Direito, lá no velho Seminário de Coimbra. Gostava do professor — Dr. Eurico Nogueira — depois Bispo de Nampula e Arcebispo de Braga. Aquela matéria puxava por mim — adoro saber os porquês… Mas detestei o pesadelo do Direito Canónico… Curiosamente, das coisas que, ainda hoje, mais me seduzem é a relação entre o Direito e a expressão da Liberdade. Coisa que, no antigamente, se diria da relação entre «a Lei» e «os Profetas»… Sei que essa linguagem, hoje, cheira a «sacristia» e é considerada já fora de moda…
Não conheço a lei que legisla essa coisa de, nestas instituições, os residentes e os voluntários não poderem «fazer o trabalho dos funcionários»… (Medo de lhes roubar o emprego?!). Na linguagem do jornal da caserna, «agora é proibido pela Segurança Social. Os voluntários e os doentes não podem trabalhar»…
Dito assim, parece que, mais uma vez «os profetas teriam que se levantar contra a Lei». Porque «a Lei» não está afinada pela realidade — único guia e mestre do pensamento válido. Seja ele «do profeta», «da lei» ou de quem for…
Atendendo ao que diz a realidade (aclarada já pelo que dizem as Ciências do Comportamento, a Psiquiatria e quejandos), parece que Pai Américo continua a ter razão quando descobriu que «o homem, naturalmente, gosta de dar-se. Comunicar-se. Ser útil. O homem só é um doente. Não ama. Explora».
Verdades como punhos, que não podemos ignorar. Com a desculpa de que «a lei não permite», corremos o risco de, também nós, nos tornarmos «assassinos de boa fé».
Um admirador
[Escreve segundo o acordo ortográfico]