BEIRE - Flash's

Um 2025 sem descartes...

1. Entrando no mundo do descarteAlertado por aquela publicidade do PAN de que falei n'O Jornal, nº 2107, de 28.12.24, tento ver-me ao espelho e dou comigo, tantas vezes, a descartar(-me)… Descartar, ser descartado… Pecados de omissão.

Atento à minha voz interior, caio na conta de que sempre que arranjo uma desculpa de mau pagador para não fazer aquilo que muito bem podia fazer e era preciso que fizesse, aí estou eu a descartar-me. A empurrar para os outros aquilo que todo o mundo podia fazer mas ninguém faz…

Hoje, a coisa assanhou-se-me. Doeu mais. A pedir que fale. Mesmo na certeza de que ando a pregar no deserto. Sinto-me impelido por aquela norma das relações interpessoais que tanto me tem ajudado — mesmo na certeza de que a mensagem não vai ser recebida, não estás dispensado de a enviar. Aprendi a lê-la como um convite a treinar-me na arte de ex(s)istir como ser-Abel… Ser este Abel, no meio de tantos outros que não são eu. Mas que sempre são um respeitável eu de alguém

Deixo-me embalar pelo sonho de um Calvário sempre renovado como Deus manda. Mas sempre em busca de uma imprescindível fidelidade ao Espírito do Evangelho que impelia Pai Américo. Dou comigo a mexer coisas que escrevi — já a sonhar poder publicá-las n'O Gaiato. Num desses papéis, com data de três meses após ter chegado aqui (já lá vão 10 anos), encontro-me a apanhar fruta com o Nelito — um dos nossos mais limitados… Esse a quem, a 06/12/08, @s agentes da Segurança Social descartaram daqui para fora, com a promessa enganosa de que vamos jantar fora… Pouco depois, encontro-me com a Alicita — a primeira morte de que tive de tratar… Ainda ajudado por Pe. Baptista que, lá de Paço de Sousa, sempre me estendia a mão quando dela precisava — vai a Bitarães, fala com F que e que e que…

Mas a nossa Alicita não foi descartada. Foi nossa até ao fim — naquele jeito que todos gostaríamos de receber, entre os nossos, quando chegar a nossa vez…

2. Uma nota de 03.10.2015… Acabo de arrumar, no arquivo da Casa, o que "de seu" nos resta dela. A pobreza de um vulgar "cartão de cidadão", anexado à "guia de transporte", passada pelo médico que certificou o óbito. Tudo o mais que nos resta são as doces "memórias do coração" que "a nossa Alicinha" soube gravar em nós. E são tantas. Mas deixai-me destacar uma discreta comoçãozita pressentida na voz/rosto dos 85 anos do nosso Pe. Baptista, impedido de estar presente: — Há cinquenta e tantos anos que estava connosco. Trouxe-a de Trás-os-Montes. Nunca teve família que a visitasse…

Aqui no Calvário, a "irmã morte" é "visita da casa" com certa frequência. Mesmo não me sendo já uma "estranha", eu precisei de ajuda para aprender a lidar com ela, aqui. Neste recanto do mundo, onde tudo o que se vê encanta, porque nos fala do que os olhos não veem, os ouvidos não ouvem, a inteligência não chega lá… "Morrer com dignidade" sempre pede que, quando a "irmã morte" chega, a tratemos com a reverência das "coisas santas. Sancta sancte, diziam os latinos. Ela no-lo merece. Sobretudo nestes momentos concretos em que se nos apresenta assim "encarnada". A buscar para o Senhor aquilo que só a Ele pertence.

A Alicinha, em suas múltiplas limitações (físicas e mentais) teve uma vida simples. Sempre a sorrir, de gargalhada fácil, vinda lá do fundo. — Ó Alicinha, eu também sou como tu, assim pequenina, vês!… Ela ria, em cascata, como as crianças. Este "diálogo" era o jeito da D. Beatriz brincar com ela, acocorando-se ao nível da sua cadeirinha de rodas.

No silêncio daquela noite, o enfermeiro Luís, que recebeu o seu último suspiro, telefona-me: — Esteja tranquilo. Ela morreu feliz, como sempre viveu. Depois, manhã cedo, a enfermeira Céu, com a ajuda das mais capazes, tratou do traslado para o salão. — Vestimo-la de branco, como as colegas pediram. Porque era uma inocente…A Zé chorou, porque queria que ela levasse o casaco que lhe ofereceu… Chegada a minha vez, corri onde o Pe. Baptista era e, com ele, aprendi a "dar as voltas" que se impunham — funerária, coveiro, tudo.

No silêncio da nossa Capela / Espigueiro (antiga "casa do pão do corpo" transformada em "Casa do Pão que dá a Vida que não morre"), saboreio este "estilo" peculiar de lidar com a morte, aqui no Calvário. No chão, sobre um tapete, "pobre, mas limpo", como diria a minha mãe, está o caixão que guarda o corpo da Alicinha. Cada um chega e sai, sem programáticos "sentidos pêsames" a ninguém… São @s da casa e alguns voluntários mais chegados. Só cada um, com a sua Fé, a ruminar o mistério da Vida neste chamamento a sempre mais vida. Porque, para os crentes, "a vida da Alicinha foi-lhe mudada, mas não lhe foi tirada"…

3. Um "fecho" que precisava ser um "abrir"… Comecei por sonhar uma re+flexão(1) sobre a CTA(2)que, também no Calvário, é preciso desenvolver para dar aos nossos doentes a melhor prenda que se pode dar a um moribundo — a mão que ama e se deixa amar… Prometo. Retomarei o tema — um 2025 sem descartes…

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1 — O prefixo re, desta reflexão, pedia-me que o assunto (a realidade em questão) fosse a dor que me causa ver que agora já quase é proibido morrer em casa, entre os seus…

2 — Mais uma vez, aí vai: A CTA é a Ciência, a Técnica e a Arte de "levar a água ao nosso moinho" — sempre que ele precisa moer em prol da humanização da morte. Porque ninguém nasce para morrer descartado…

Um admirador

[Escreve segundo o acordo ortográfico]