BEIRE - Flash's

Uma crónica que foi adiada...

1 – Já vamos ter mais uma crónica… Aquela conversa, naquelas circunstâncias, ficou-me a bailar cá dentro. Por duas grandes razões. O facto de ser com Pe. Júlio. E por, tantas vezes, ouvir o mesmo comentário — se estivesse aqui o Abel, isto dava para uma crónica das dele

Então, aí vai o flash que aconteceu. Pe. Júlio estava doente — muito antes da covid 19. Acamou, a passar de uma semana. Animou. Mas logo recaiu. Eu ia sabendo do seu estado de saúde através das notícias da caserna... Sinto-me sem jeito para perguntar pela saúde e/ou para estar com o outro na sua dor. Mas, curioso isto, gosto de cuidar da minha saúde e dou-me bem com a minha própria dor — sem cair no clássico convite para lamber as feridas(1)… — Então está melhor?!... Muitas vezes isso não passa de um ritual do oh, e eu?!.. Ando aqui com isto e aquilo e mais aqueloutro

Gosto de pensar que os meus lutos são meus e mais 'ninguém pode fazê-los por mim'. E pensar que 'se morre sempre sozinho'. Daí o meu gosto pelo rezar assim: «Senhor, que nada nos aconteça hoje que Tu e eu não possamos resolver juntos»…

Ah, mas eu queria ir ver Pe. Júlio. E assim, fora do ambiente do trabalho, dizer-lhe de viva voz que, mesmo neste meu caladinho, a parecer indiferente, eu o estimo muito. Sei que comunga comigo esta «força que nos arrasta irrefreavelmente na direção do outro — do sofredor — para onde vai a nossa simpatia»(2)… Se é preciso estar nessa missão comum, lá estamos nós. E sabemos estar bem um com o outro. Para alegria de ambos — cada um neste nosso jeito de ser "eu e as minhas circunstâncias"…

Falei ao Bruno, então chefe maioral lá de Paço de Sousa. Combinamos. Fui lá ter e subi com ele… Devo ter deixado escapar algo que me traiu. Aquele quadro quebrou todos os meus esquemas mentais — o quarto (do Diretor!...), numas águas furtadas; com a cabeça a bater no teto; o doente estirado numa quase enxerga… A simplicidade e a pobreza ali reinante…

Sei que o mundo das minhas emoções é denso, mas gosto mais de as soltar para a escrita do que de as mostrar aos olhos dos outros. As lágrimas traem-me facilmente… E eu cresci num mundo em que «é feio um homem chorar»…

Vai daí, Pe. Júlio, que também é observador e caladinho como eu, deixou soltar um gracioso «já vamos ter mais uma crónica, com certeza». Não sei se o disse para o Bruno ou para mim… Sei que o disse. E ainda não sei se foi isso que adiou a dita cuja crónica até hoje…

2 – Para mim, é muito necessário... Por razões de saúde, tenho andado a navegar por outros mares. Na doença, os filhos chegam-se mais e reforçam o recado: — Gostamos muito que tenhas assim uma 'família alargada', mas nós estamos primeiro e sabemos cuidar de ti… E eu saboreio as doces experiências deste amor entranhado pelos filhos e netos e sentir bem fundo que o coração não para de bater pelo Calvário. Tudo se traduz em WhatsApp para Pe. Alfredo «mostrar a Pe. Telmo», um telefonema de vez em quando e, se algum filho está disponível para me levar a Beire, ir até lá e ouvir os clássicos então, está melhor?!; quando é que volta? Estamos à sua espera…

São formas de não deixar estancar a «fonte de água viva» que o Calvário é para mim. Falo do mar de Leça, mando fotos, comento. E sempre a mesma pergunta de Pe. Telmo: — Quando é que vem?!.. Está aqui a fazer muita falta. Os chuchus estão cheios de saudade a perguntar-me por si… Até que há dias, na sequência de um telefonema de gente da Casa a insistir que viesse para dar um bocadinho mais de colorido a Pe. Telmo, sucede isto:

Ligo a Pe. Telmo, rimo-nos das nossas mangalas (como diz o Pomba), dou-lhe os recados do mar, acolho dele um beijo e um abraço grande para esse mar tão bonito. E, brincando, repito-me dizendo que agora já não posso mais cuidar de… e de… e de… Pe. Telmo, de voz embargada, deixa sair um pois, mas eu também tenho necessidade de si. Venha depressa… A coisa bate fundo. Penso na crónica adiada de Pe. Júlio e ouço, lá no mais fundo de mim: — Esta dava outra crónica, à maneira de...

3 – A alegria e a dor são «siamesas»… Aqui no Calvário e/ou à volta dele, os flash's sempre são mais que muitos — desde o rir ao chorar… Importa é educar os olhos do coração para que sempre possam ver mais longe que os olhos da carne… Importa é descobrir que educar os olhos do coração é, no belo dizer do nosso Cardeal Tolentino, cultivar «a perceção de que tudo é dom». Porque isso «nos ajuda a vencer a desconfiança em relação à existência e a olhá-la na sua inteireza».

Ai quanto gostava de saber dizer-vos o como isto é verdade. Dizê-lo assim cá de dentro, a partir deste meu saber de experiências feito

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1 — No movimento de Psicologia PRH, esse prazer mórbido de falar de doenças chama-se gosto de lamber as feridas; na Análise Transacional, isso é visto como um inconsciente jogo psicológico — "eu ainda sofro mais que tu" — para ver quem é o maior no aguentar a maior desgraça…

2 — A simpatia, se bem alinhada com a empatia, é uma boa fonte de oxitocinas — a hormona do bem-estar, da alegria e do amor…

Um admirador

[Escreve segundo o acordo ortográfico]