BEIRE - Flash's 

P.e Acílio: A jeito de "despedidas"...

1. Do farol da Boa Nova até Setúbal… Ainda em convalescença pós-operatória, protegido pelas canadianas, percorro a Marginal da Boa Nova, em Leça da Palmeira. Um orgulho da mestria do arquiteto Sisa Vieira, expressão da nossa «arquitetura paisagística». Olho à volta e fico de queixo caído. É a beleza deste recanto da nossa costa portuguesa. A beleza da Marginal. É a procissão de dezenas e dezenas de peregrinos no Caminho da Costa rumo a Santiago. Mais estrangeiros que nacionais. Fotos aqui, fotos além. E eu dividido entre dois mundos. A essa mesma hora em que me esforço por cumprir as prescrições do médico operador — agora é andar, andar, andar. As «forças vivas» do nosso Calvário correm para Setúbal. São as exéquias do nosso querido P.e Acílio.

Deixo-me encontrar com ele. Agradecido pelo que lhe devo. Desde os meus 20 anos — setembro 1957, ainda Frei Simeão em busca de seu próprio caminho… Era a reunião mensal dos Padres da Rua, na sua Casa do Gaiato de Setúbal. Fomos de Paço de Sousa, P.e Carlos, P.e Manuel António e eu. Naquele tempo, era um dia de viagem. Chegamos à noite. Levou-nos o Carlitos. E aí conheci P.e Baptista – outro Padre da Rua a quem tanto devo.

Desde esta minha/nossa dimensão de «seres significadores», olho a talha de granito que aponta para um conjunto escultórico de Barata Feio, dedicado à memória do poeta António Nobre que por aqui andou em busca da saúde que lhe fugia. Bem gravado na pedra, posso ler: Farto de tantas dores com que o matavam foi em viagem por esse mundo. À luz daquilo que, dentro de mim, está bem vivo sobre P.e Acílio, leio de outro jeito aquilo que aqui se diz do Poeta. Não sei se alguém irá ou não fazer uma Bio+Grafia de P.e Acílio. Sei que, pelas pegadas que deixou, mexeu em muitas bio+grafias — a começar pela minha. Por isso, também dele posso dizer o dito já consagrado: Amar é dizer a quem parte — tu não morrerás. Aliás, a morte não é o apagar de uma vela para sempre. É só o extinguir-se de uma luz porque o dia já está a amanhecer

2. De 1957 até hoje e até à Eternidade… Deixo-me tocar pelas despedidas que já fiz. Muitas delas também feitas por aqui e outras que, agora também por aqui, ainda ando a fazer... Aliás, viver é despedir-se para poder conquistar o novo. Percorri estes penedos, com filhos e netos a aprender a crescer(-se). Ai de nós se assim não for... Viver é aprender a deixar que outros também aprendam a viver. «É preciso que ele cresça e eu diminua…» Jo 3-30.

Porque é domingo e o tempo está ameno, a Marginal é um pulsar de vidas em seus múltiplos segredos de expressão. E recordo Pedrosa Ferreira — um padre salesiano que também deixou rastos de vida em mim. Éramos cúmplices em nossas atividades apaixonantes — dedicadas à Catequese e Grupos de Jovens… Um dos seus livros de Dinâmicas de Grupo tem este bonito título — Libertar a Expressão. Nascido num meio paupérrimo, não duvido de quanto o teatro me ajudou a libertar-me em minha própria expressão de menino tolhido pelo medo — porque «pobre não tem querer»… E aqui recordo Luís Aleluia — o Menino Tonecas, de saudosa memória e honra da Casa do Gaiato de Setúbal. Em imagens que a TV nos mostrou, enternecido, ao lado de P.e Acílio.

Acadimados em cadeira de rodas, passam por mim alguns doentes como os nossos do Calvário. Alheados e a babar-se. Mas com todo o ar de quem saboreia o sol benfazejo da manhã e o arzinho fresco do mar. Vão conduzidos por... Não sei se profissionais, se voluntários ou familiares. Sei do Calvário e seus voluntários. E sei da alegria que me invadiu na sequência de uma reunião em Setúbal, também participada por P.e Acílio. Na vinda, P.e Alfredo e P.e Telmo foram ao Cabril visitar P.e Baptista. Em conversa puxa conversa, ouvi: — É curioso que tanto P.e Acílio como P.e Baptista tenham mostrado vontade de vir para o Calvário se perdessem a autonomia de que ainda gozam…

Recordo a festa de P.e Telmo quando, há tempos, na sequência de uma consulta no Hospital da Boa Nova, o levei a ver o mar e tomar um cafezinho ali numa esplanada, junto da praia… Aquela que António Nobre cantou num soneto cuja primeira quadra figura em placa de mármore — frente à capelinha de S. João das Penhas, mais conhecida por capela da Boa Nova… «Na Praia da Boa Nova, um dia / (Foi esse o meu grande mal) / Edifiquei alto castelo / (O que é a fantasia) / Todo lápis-lazúli e coral.»

3. Apaga-se a luz porque já o dia nasce… Gostei daquele pormenor no comunicado de Direção da Obra da Rua:«Enviara-nos o seu artigo para O GAIATO — Património dos Pobres — antecipadamente, tendo em vista deslocar-se ao centro do País. No decorrer dessa viagem sofreu uma queda num estabelecimento, tendo em consequência disso sido internado no Hospital de Santa Maria em Lisboa».

Fez-me lembrar um artigo de P.e Acílio, publicado a 24.08.24, n.° 2099. Nele se pode ler: «Senti a multidão suspensa das palavras que me iam saindo da boca e os olhos cravados no padre de andarilho». Leio a notícia da sua morte a esta luz. Morreu como sempre viveu — a trabalhar. Mesmo de andarilho…

Centro-me no pormenor de uma crónica dos seus primeiros anos de Padre da Rua — chega à noite, exausto e com o breviário ainda por rezar… Para fugir ao sono, põe-se de joelhos, aos pés da cama e começa… Só que o cansaço era tanto que, mesmo assim, adormeceu… Acordou, já era outro dia. Porque o Senhor, em vez do breviário rezado, aceitou aquele merecido descanso…

Volto a António Nobre – ambos fartos de sofrer… Ambos foram «em viagem»… Um foi «por esse mundo»… Outro «para a Casa do Pai»…

P.e Acílio fartou-se de sofrer pelos que sofrem… Mas o seu «fartar-se» tinha outro sabor — dava-lhe mais vida e vida em abundância. Essa de que agora goza, à nossa espera.

Um admirador

[Escreve segundo o acordo ortográfico]