
BEIRE - Flash's
As "falas" da morte do gaio…
1. Não detenhais o meu voo… Este grito de Richard Bach, penso que no Fernão Capelo Gaivota, volta e meia, aqui no Calvário, toma conta de mim… Penso que até para quem gosta de observar as aves, o Calvário é um paraíso. Seria um grande «pecado de omissão1» deixá-lo estragar. Todos somos poucos para dar as mãos em defesa e atualização contínua desta «palavra tirada do Evangelho»… Porque só aí, no Evangelho (pelo menos até ver…), podemos encontrar as normas do respeito devido à d'ignidade2 de um ser humano. Sem distinção de raças, cor da pele, crenças políticas e/ou religiosas.
Nas décadas de 50/60 do séc. pp, o Calvário foi uma celebrada e ousada tese de doutoramento em matéria de Ação Social. O que lhe é efémero já passou, mas o que nele há de eterno não podemos deixar que pereça3. Se uma IPSS4 não pode ignorar a evolução da Ciências Sociais também uma ERPI5 não pode ignorar a evolução das Ciências Religiosas. Ambas têm como pano de fundo comum a Antropologia – uma Ciência das muitas Ciências do Homem.
É d'isto tudo que me "falam" os gaios que por aqui abundam. Garbosos, coloridos, de cabeça erguida a cada debicadela no chão, voo rápido e bem direcionado. Quando os vejo e/ou os ouço, sempre me lembro dele – ali preso, a atirar-se contra a rede que o impedia de voar… Ninguém nasce para vítima seja do que for. Foi essa a revolucionária Boa Nova deixada por Jesus de Nazaré – o grande Mártir do Gólgota… Que preferiu deixar-se matar no madeiro da cruz do que deixar-se negar aquilo que, para Ele era uma evidência – o Senhor da Vida não quer que a vida seja desrespeitada. A começar pela vida ameada pelas periferias...
2. (…) Por minha culpa, minha tão grande culpa… Não foi só o Sr. Fulano que cometeu esse 'pecado' – roubar a liberdade a um gaio… Também eu fiz nassas / armadilhas / ratoeiras para caçar passarinhos. Verdade que, neste caso, o «pecado» até nem foi meu. Mas, às vezes, ainda dou comigo a questionar-me se e se e se não deveria ter feito isto ou aquilo para deixar o gaio fugir… A coisa foi assim:
Com o peso dos seus oitentas, o Sr. António gostava de sentar-se fora de portas, num peal encostado ao muro, voltado para o pomar da quinta. Fumava o seu charuto, a observar a vida à sua volta. – Gosto de ver as árvores assim carregadas de fruto. São bonitas. Custa-me colher a fruta. A bicharada também tem direito à vida…
Pois. Mas, dentro dele, ainda vive o menino traquinas, de outros tempos. Ao ver ali, tão pertinho dele, os pássaros no chão a debicar isto e aquilo, vem o desejo de voltar a fazer uma nassa de vergas de vime ou salgueiro - miniatura das caniças das galinhas criadeiras… Ali há sempre água e comidinha para os pintainhos… Elas presas dentro da caniça, eles, passando por debaixo das pernas da caniça, entram e saem à voz da fomita e/ou da voz da mãe-galinha que os educa e prepara para a vida…
Apanhou um gaio. Não cabia em si de contente. Parecia um gaiato feliz... Com uma velha rede de galinheiro, fez uma gaiola, debaixo do espigueiro da eira. Pôs água e comida a jeito. Soltou ali o gaio… Pois sim. O gaio, através da rede, via a liberdade lá fora… Atirava-se contra a rede, uma e outra vez. Sangrava pelo bico que espetava nos buracos da rele… Mesmo assim não desistia. Antes morrer do que viver engaiolado…
3. Livres de escolher o próprio «destino»… Sei que estas «falas» da morte do gaio têm ainda outra explicação. Em Singeverga ainda, li «O Desporto das Grandes Emoções», de Adolfo Casais Monteiro, creio… Aquilo prendeu-me. E fixei-me no observar o comportamento de algumas aves – o dentista dos crocodilos, os pardais e os gaios. A estes conhecia-os eu bem. Achava-os espertos e bonitos. Uma fritangada, na sequência de lhes roubar um ninho com os filhos já a querer voar, ah, essas emoções nunca mais eu esqueci…
Até aí, conhecia bem o seu grasnar ainda antes de nos aproximávamos do ninho; conhecia bem o ataque do casal quando nos apanhavam perto do ninho… Mas não sabia que «o gaio é o guarda da floresta». Há sempre um gaio, no ponto mais alto. Está de vigia. Mal chega alguém, o gaio levanta voo, e lá vai ele a grasnar – aviso de que um possível inimigo se aproxima…
Ainda ouço o grito daquela morte – é crime fechar uma Pessoa numa «gaiola», por mais «dourada» que ela seja…
1 Fixei: «A omissão é o ato destrutivo mais poderoso»…
2 A nossa d'ignidade não vem de nós nem dos outros. Ela provém do Autor da Vida, que nos tirou do barro para fazer de nós pérolas preciosas…
3 Tudo o que não seja para defesa da «maior d'ignidade do homem» é efémero / Tudo o que seja em sua defesa tem laivos de eternidade…
4 As IPSS são «Instituições Particulares de Solidariedade Social». De modo geral, aparecem ligadas a uma confissão religiosa e/ou filantrópica. Mas, porque são sociais, não estão dispensadas de «dar a César o que é de César»…
5 As ERPI são «Estruturas Residenciais para Pessoas Idosas». Ou são «do Estado» ou têm com ele «acordos» de cooperação… Mas, porque são «para Pessoas» (para mais idosas e/ou equivalentes, pela sua dependência…), não podem estar dispensadas de «dar a Deus o que é de Deus» - mesmo num Estado Laico. Porque laico é o Estado não as pessoas….
Um admirador
[Escreve segundo o acordo ortográfico]