Beire - Flash's

... Olhar "nos olhos" a realidade...

1. Marginalizados pela própria "Lei"… No lidar com a problemática das relações das IPSS's com o ISS1, e vice-versa, deparamos com situações que nos convidam a RE+fletir2. Assim:

a) Um menino desamparado não pode ser entregue às Casas do Gaiato porque "há que abrir um pro+cesso e esperar pelo per+correr dos papéis" — com suas demarches sempre morosas… Legalmente, o nosso papel está reduzido ao de qualquer pessoa que disso tome conhecimento — sinalizar. Isto é, dar conhecimento a um agente do Serviço Social para que "vá lá, para cuidar". E, depois, ficar quietinho, à espera que o tempo resolva/enterre o caso… Como se não se3 pudesse fazer mais nada.

b) Um doente que, de repente, fica inválido ou teve alta hospitalar e não tem para onde ir não pode ser entregue ao Calvário porque "há demarches a cumprir e papéis a preencher". Tudo muito compreensível. A Lei é necessária (até Moisés, n'aquele tempo, se deu conta disso). Porque, no caos, ninguém se entende. E os oportunistas estão sempre à espreita de uma brecha nas muralhas…

E onde está a Lei que protege uma Necessidade Urgente, sem mais delongas?!

De consciência tranquila, deixamos que tais casos morram nos serviços de urgência de um qualquer Hospital e/ou nas infindáveis listas de espera dos Serviços Sociais, ditos competentes

Parece que de nada valeu o alerta d'O Nazareno — "Se o teu boi ou o teu burro cair ao poço em dias de sábado, tu não vais esperar que…" (Mt 12, 10-11). Esquecemos que "a Lei — necessária, sem dúvida — é para os homens e os homens não são para a Lei…" (Mc 2, 27). A "lei de Deus / lei da Natureza" não pode deixar os homens a morrer embrulhadinhos na Lei e suas Escrituras… Precisamos aprender a "ver nos olhos" a realidade em questão. Como diria o grande Bispo Ferreira Gomes, que tanto apoiou o nascer e o crescer da Obra da Rua, no Porto: "Há que saber ler o jornal à luz do Evangelho e saber ler o Evangelho à luz do jornal"…

a) Se o menino fica na rua, entregue a si mesmo, temos a porta aberta para toda uma vida entregue à moinice… Com as dolorosas e perigosas consequências que isso traz — para o próprio, para os seus grupos de pertença e para toda a sociedade em geral.

b) Se o doente fica sem os cuidados devidos, pior ainda, vai finar-se… Quando chega "o papel da chamada", já ele se foisabe Deus como.

Gosto das "Escrituras" — sejam elas d'A Lei, sejam elas d'As Crenças. Sem a Lei de um rumo certo, não há orientação para um barco perdido no mar… Gosto das Escrituras. Mas gosto mais ainda de "olhar nos olhos" aquele grito do "Filho de David, tem piedade de mim…", a pedir um "levanta-te, pega na tua enxerga e segue — rumo à tua salvação4"…(Jo 12, 20-33).

2. Que pena não ter feito uma foto… Era ao meio da tarde. Estava aqui, diante do computador a registar estes meus sonhos de menino e moço — mesmo que já octogenário… Sonhos de um mundo melhor. Toca o tlm.: — Pode chegar aqui, sff? Desço e vejo um casal, com um filho pequeno. — Este é fulano e sua esposa. Foi da Casa do Gaiato do Tojal e gostava de ir ao nosso Cemitério, à campa do Pe. Luís. Se o pudesse acompanhar… Que eu, agora, estou ocupado numa reunião zoom com…

Tomada a chave, fomos por aí acima. Eu aproveitava o tempo da subida, para ouvir a história daquela vida e para explicar o que íamos descobrindo pelo caminho… Soube que aos 12 anos foi para a Casa do Gaiato do Tojal, onde Pe. Luís era. Esteve até aos 19 anos. — Já entrei grande demais. Fui um malandro. Dei que fazer ao Pe. Luís. Saí revoltado — sem saber que a minha revolta era contra mim… Depois serenei. Comecei a lutar pela vida. A saborear o gosto do conquistar um lugar ao sol… De vez em quando, sentia vontade de ir à procura de Pe. Luís e pedir perdão pelas dores de cabeça que lhe dei... Foi-se tudo adiando, adiando… Agora, vim ao Norte e disse para a mãe do meu filho: — Desta vez, temos de ir lá…

Entramos no Cemitério. Saboreamos aquele belo poema sobre a morte, que a Lala compôs para o nosso cemitério. Um poema que já tantas vezes aqui reproduzimos. Procuramos a campa de Pe. Luís — o n.º 5 da zona P. Enquanto a mãe, o menino e eu esperávamos, em silêncio, o pai deixou-nos. Ajoelhou diante da campa, inclinou-se profundamente, em atitude de oração. Ainda de joelhos, endireitou-se. Falou qualquer coisa que só Pe. Luís e ele puderam ouvir. Sei é que voltou a inclinar-se sobre a campa, foi à cruzinha de cimento poisada sobre a terra nua e seca, na cabeira da campa, junto a uma roseira que a ali plantaram. Beijou a cruz. Ergueu-se de novo. Parecia reconciliado — consigo, com Pe. Luís e com a vida.

3. Leis em prejuízo de ambas as partes… Fico-me a ruminar o cenário. Com pena de não ter feito uma foto. Penso, sinto, acolho tudo isto como uma evidência — é um crime impedir a entrega… Porque uma Casa do Gaiato até cria d'ISTO.

1 IPSS — Instituição Particular de Solidariedade Social; ISS — Instituto de Segurança Social.

2 Se olho nos olhos a palavra refletir, vejo que ela esconde um convite a debruçar-me / pôr de joelhos (fletir!) sobre uma determinada REalidade que precisa de ser tratada com toda a d'IGNIdade que ela merece… Caso de crianças e jovens — em fase de DESenvolvimento, dependentes da orientação que este desenvolvimento possa tomar…

3 Gosto de RE+fletir sobre este se!… Não é um simples "agente apassivante"… Tem de ser o aguilhão que me deixa inquieto enquanto não vejo o caso tratado.

4 A "salvação", na Boa Nova do Evangelho, é o "livrar do sofrimento, o matar a fome e o criar proximidade" — para que ninguém se sinta fora da Casa do Pai.

Um admirador

[Escreve segundo o acordo ortográfico]