
BEIRE - Flash's
Fabricantes de fantasmas...
1 - (...) depois, dás para mim... Estava na 'casa da hortaliça' a tratar de uma abóbora que nos ofereceram, de cujas sementes não posso perder-me. Sancta sancte - lembrei eu, lá do latim. As 'coisas boas' (sancta!) precisam ser tratadas com delicadeza (sancte!). Nisto entra-me por ali dentro o Valdemar - um dos nossos, com marcas mais fundas. Desvairado, como lhe é habitual, incapaz de falar, sempre que nele o mal1 se activa. Mira tudo, pronto a atacar, se encontra resistência. Olha para mim, olha para a bacia que tenho entre mãos. Como que num grunhido rouco, avança, tira-me a bacia das pevides e zarpa com ela dali para fora. Conhecedor e já algo treinado em lidar com ele, não ofereci resistência. Fui à porta e, com a voz mais doce de que fui capaz naquele momento, disse: - Leva, Valdemar, mas depois dás pra mim... Avançou mais uns passos, olhou para trás, e parou. Olhou-me de esguelha e, frente à minha serenidade sorridente, voltou atrás. Com a maior das calmas, entregou-me a bacia em mão... Lembro D. Margarida: - Estes são os filhos que Deus nos mandou!
Fiquei a magicar esta cena. Recordei outras, também nele. Algumas, de enternecer a gente. Aquele beijo na Cruz Gloriosa, na Visita Pascal de 2017, que já vos contei. No rodar do filme interior, que sempre me acompanha nestas situações de treino do Aprendiz de Vivente em mim, aparece-me uma cena atribuída ao Papa Leão XIII. Reza assim:
Certo pintor francês desejava fazer um retrato ao Papa. Mas este não arranjava tempo para posar. Até que, para despachar o artista, lá arranjou uma meia horita. Já em casa, o pintor, satisfeito, deu o quadro por terminado. Foi a correr mostrá-lo a Leão XIII. E pediu-lhe uma legenda para o quadro. Sorrindo, o Papa ditou: - Veja Mt 14, 2.
Ansioso, de volta a casa, consulta a citação proposta. Depara-se com as palavras de Jesus quando, naquela noite de tempestade, vai caminhando sobre as águas, ao encontro dos seus discípulos que, assustados, julgaram ver um fantasma... -Calma, rapazes, que sou EU!...
2 - Os 'pintores' do nosso Calvário... Da cena com Leão XIII lá no Vaticano, passo para o nosso Calvário. Um Calvário que, em termos de acção social, ainda hoje é mesmo 'uma palavra nova' porque 'uma palavra tirada do Evangelho' - aqui, onde a Boa Nova é viva e vivifica. Em termos da laicidade da Segurança Social, o Calvário é apenas mais uma entre a vulgaridade de tantas ERPI (Estruturas Residenciais para Pessoas Idosas). Vejo aqui a tentação de César a querer meter no que é d'ele aquilo que já o ULTRApassa porque é de Deus (Mt 22, 15-22). Saboreio esta diferença! Procuro entender a tentação. Vejo porque é que o Calvário não possa passar despercebido. E que sejam muitos os artistas a querer 'fazer o retrato' do Calvário. Acho até curioso e muito significativo que, em novembro e dezembro de 2018, a quando da invasão da barbárie, um dos artistas que, na comunicação social, mais pintou o fantasma do Calvário, meses antes, tenha andado por cá a recolher dados e imagens para pintar a 'palavra nova', 'tirada do Evangelho'. Parece que até isto de 'pinturas' também está sujeito às leis da moda - aquilo que, em termos de audiência, está a dar mais...
3 - Sou EU, não tenhais medo... A cena do Valdemar traz-me à mente aquela velha quadra de que 'o coração e os olhos // São dois amigos leais // Quando o coração está triste // Logo os olhos dão sinais'... E ainda o curioso poema 'Impressão Digital', de A. Gedeão: Os meus olhos são uns olhos // E é com estes olhos uns // Que eu vejo no mundo escolhos // Onde outros, com outros olhos // Não vêem escolhos nenhuns// De tudo, o mesmo se diz // O onde uns vêem luto e dores /[fantasmas!...]/, Outros descobrem cores do mais formoso matiz (- Sou Eu!...).Fecho os olhos para ver melhor. Deixo o Valdemar de hoje, e percorro um a um todos estes filhos que Deus nos mandou. São milhentas as cenas, deste e de outro tipo, que fazem parte do nosso quotidiano. Uma verdadeira paixão, para quem se sente em processo de aprender a ver com o coração e os olhos. D'aqueles que querem amar como Jesus amou, sonhar como Jesus sonhou.... Ouço o ressoar daquela voz milenar: "Se hoje ouvires a voz de Deus, não endureçais o vosso coração"...
Rumino Isaías 45, 15 e seguintes: 'Nada compreendem os que elevam ídolos de madeira e oram a um deus que não pode salvar'... Recordo Paulo, Hb 4, 12-16: '(...) Confiantes, vamos em busca de um auxílio oportuno'.
Nesta hora de apertos - a pandemia, as obras em curso e em custos, incógnitas pelo entendimento do 'dar a César o que é de César e dar a Deus o que é de Deus', temos de ir direitos lá onde Cristo agoniza. A gritar para que, em nós, se afaste d'Ele este cálice de dor.
Acredito que todos somos chamados para servir de 'instrutores uns dos outros'. A prestar uns aos outros o alívio que todos necessitamos.
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1 - Gosto da expressão 'o mal' (ou 'o maligno', 'o demónio'), com seu sabor bíblico. Para significar o sofrimento, a dor insuportável, quando o paciente perde todo o controlo, e tudo fica por conta da emoção descontrolada...
Um admirador