BEIRE — Flash’s

Um Deus que tenha pele!...

1. Já depois de uns quarenta anos!... Quando aquilo ocorreu, estava longe de pensar que, 40 e muitos anos depois, ainda iria fazer-me luz sobre tanta coisa que acontece em mim e à minha volta aqui no Calvário— uma casa de família para doentes sem família A Isaurinha ainda estava connosco, nesta dimensão terrena. Mostrei-lhe aquela página da revista Saúde e Lar. Depois, muitas vezes, como quem brinca, dizíamo-nos pertencer ao grupo daquela menina de seis anos— precisamos de um Deus que tenha pele… De tal modo, um e outro, nos reconhecíamos cansados deum Deus Todo Poderoso, Senhor dos Exércitos, nosso Legislador e Remunerador…

Bom. A cena é esta: O casal está a dormir no seu quarto e sua filha, de seis anos, também está a dormir no seu quartinho ao lado. Altas horas da noite, sobre a cidade, cai uma trovoada que põe tudo assustado. A menina, a chorar, corre ao quarto dos pais. O pai, um conceituado Pastor Protestante, acolhe-a nos seus braços. Afagando-a, desata num discurso de circunstância: — Vamos ter fé, Joaninha. Deus é pai, não vai acontecer nada. Tudo vai correr bem… Mas a menina também já tem a sua teologia (a da vida que pulsa dentro e fora de si) dispara: — Mas eu preciso de um Deus que tenha pele!…

Em Análise Transacional, estudei este fenómeno humano d'Os Toques, como uma Fonte de Vida. Coisa de tal modo im+PORT+ante na nossa vida que os estudiosos do caso dizem isto: "Qualquer pessoa, para viver minimamente equilibrada, precisa de uma média diária de três horas de toque". Coisa de que alguns falam como que de uma verdadeira fome da pele— comum a todos os animais de sangue quente… O estudo desta temática foi-me abrindo a uma nova visão de todo o meu Ser Abel. Tudo começou a alargar-se em novos horizontes de ser.

É com alegria que "vejo" que ISSO acontece em mim e também acontece em cada um destes nossos doentes, voluntários e cooperadores. Sinto a verdade daquele "primeiro mandamento" de valor universal de que tanto gosto de falar— a ver se aprendo a cumpri-lo: "Conheça as suas necessidades e o nível delas". Que vem dar razão ao alerta de Lacan, infelizmente ainda desconhecido para muitos— O que não se torna consciente vira destino. Descubro que muita da agressividade, que todos desencadeamos à nossa volta e também às vezes sentimos cair sobre a nossa pele, provém daí — uma falta de resposta adequada a esta nossa fome de pele. Uma necessidade básica, na grelha de leitura de Eric Berne.

2. Ouvindo "o viver" de cada um… Revivo cenas passadas e, em cada dia que passa, somos novas experiências. Descubro que o sentir-se em família é mola impulsionadora que leva estes rapazes e estes doentes a buscar em nós este Deus que tenha pele. E descubro ainda que uma resposta atempada, bem à medida de cada um, nem de mais nem de menos, os pacifica. Acorda neles o desejo de serem úteis. O desejo de aprenderem a tornar-se próximos sem dependências doentias. Tudo assim, com a maior das naturalidades, a correr para fora deles como a água corre da nascente para a fonte.

A Fatinha, de quem tantas vezes aqui falamos, teve um AVC. Foi logo conduzida às urgências. Ficou internada— já vai para duas semanas. Cá em casa, todos os dias, volta e meia, vinda de onde menos se espera, lá vem a pergunta: — Atão, a nossa Fatinha já tá melhor?!... Quando é que ela vem?

Sempre a mesma forma de perguntar: a nossa Fatinha. Com toda a força deste nossa— um pronome carinhativo… Como quem sente que algo nosso nos está a fazer falta… E lembro um jeito de certas tribos da Guiné, quando se lhes pergunta como vão as coisas: — Não estamos bem. O nosso Jaimito está doente… Uma forma bonita de dizer ao mundo que, quando um membro da família sofre, também sofre a família toda.

De olhos fechados, deixo correr o filme do nosso dia-a-dia. Vejo tantos a encostarem-se a nós. A propósito de tudo e de nada, abraçando-nos, encostam a cabeça ao nosso peito, a rir, enquanto repetem— xô Pe. Telmo, Maria, xô Mário, Bábara, xô Bel, …Paro-me no Carlitos. De todos os nossos rapazes, é o mais marcado por uma história triste— a purgar feridas-de-não-existência. Não existência de uma resposta capaz para as suas motivações e necessidades de sentir-se reconhecido e aceite como gente. No meio da gente que o rodeia. Refugiou-se num mecanismo de defesa curioso— o perfecionismo da limpeza e arrumação. Não fala com ninguém. Procura ocupar-se no apanhar o lixo… Se se sente ameaçado no seu mundo, descamba aos berros, num repetitivo eu não vou morrer nada. O Pe. Carlos é que manda. E a coisa pode durar uns 20 a 30 minutos, a dar voltas por onde tenha caminho livre…

Não se mete com ninguém, sempre de cabeça baixa. Em busca de um lixo qualquer para levar ao contentor… Se está em comunidade e vê uma coisa fora do sítio, tem de ir lá pô-la no sítio — num gesto obsessivo compulsivo…

Há já uns anos o Mário de Malanje (hoje Mário do Calvário) está connosco. Faz parte desta família. E é dotado de um jeito especial para lidar com este tipo rapazes. Não mostra qualquer dificuldade em lidar com o Carlitos. Se tem alguma tarefa de que o Carlitos é capaz (regar certas plantas, arrumar umas lenhas, enfim), Mário explica-lhe tudo calmamente até que Carlitos incorpore aquilo bem e deixa-o sozinho. Aquilo sai perfeito todo o tempo, enquanto a tarefa durar. — Foi o Mário que mandou… E a partir daqui não há mais Carlitos. É capaz de andar uma manhã ou uma tarde inteira a fazer um serviço de arrumação, de rega ou de limpeza, porque foi o Mário que mandou…

Descobri-lhes o segredo: Mário brinca muito ele… Quando, no refeitório, passa por detrás dele, faz-lhe um afagozito nas costas, na cabeça ou no ombro… Carlitos olha a ver quem o tocou… Vê que é o Mário e sorri. Com um sorriso bonito. De quem sente que por ali passou um Deus que tem pele, a reconhecê-lo como gente e a dizer-lhe que o aceita como ele é e é assim que gosta dele…

Ai quantos Carlitos andam aqui e fora daqui, a precisar de um Deus que tenha pele!...

Um admirador

[Escreve segundo o acordo ortográfico]