
BEIRE - Flash's
COM+viver(1) com “os 100 anos”…
Se bem me lembro, foi o velho Cícero (106 a 43 a.C.) que se lembrou de dizer que as pessoas são como os vinhos: os bons cada vez ficam melhores; os fracos cada vez ficam mais difíceis de tragar… E, nestas circunstâncias, recordo aquela de John Powell, no seu livro Ele Tocou-me. Na falta de vocações, o seminário onde estudara virou Lar/Residência dos jesuítas idosos. Ele, já catedrático da Loyola, conferencista e escritor consagrado, ao saber de um velho professor seu, que muito o marcara na sua carreira, agora, residia ali, quis passar por lá para o saudar. Chegado, já no corredor, encontra outro velho professor de quem recordava misérias… Logo ali, ouve: – V. ainda vem por aqui?!... Eu só queria a sua idade… Dizia-lhes como era. Mandava-os todos à fava... Um homem deu a vida toda a isto e agora… A comida parece uma lavagem para suínos… O enfermeiro nunca tem horas nem sabe o que faz… Aqui, ninguém conhece ninguém… etc. etc. etc. Jonh Powell, aguenta, despede-se e vai ao quarto que procura.
– Oh, que honra me dá! Tenho lido os seus livros, acompanho a sua trajetória. Orgulho-me muito de si. Mas olhe que vale a pena ser fiel à nossa vocação. Aqui não nos falta nada. O Irmão Cozinheiro é de uma dedicação inaudita. É como se cozinhasse para cada um em particular… O Irmão Enfermeiro, às horinhas, lá está com a medicação pronta… Na Comunidade, ninguém sabe o que mais nos fazer…
Já de volta a casa, sozinho consigo, ruminando as duas cenas, Jonh Powell ouve a voz do Espírito que o "toca": – Jonh, se não te preparas a tempo e horas…
1. Não roubar o lugar a ninguém... Sou um sortudo. Os filhos a puxarem-me para casa: – Tu não precisas disso. Podes pagar a uma pessoa que, durante o dia, … Depois, à noite, nós vamos buscar-te… Como fizemos quando foste operado… E também me sinto querido aqui. Com a ilusão de ainda ser útil. No testemunho que tento ser – de paciência e bondade; serenidade, alegria e paz(2)…
Recordo P.e Telmo, vindo de África, em cima dos 90 que empurram para os 100 anos – que completa agora. Na sua delicadeza de não querer ser peso para ninguém, quer ir-se embora daqui, para o Lar Betânia. Uma Residência Sacerdotal para a Diocese de Bragança, a cujo presbitério pertence. – Porque o Calvário não é para padres velhos; é para e para e para… (Tudo casos que já não há ou, se os há e aparece alguém que se compadeça a denunciar isso, logo a Segurança Social aparece e corre para mostrar que o Estado cuida… (antes que o caso apareça nas redes sociais, claro).
– O que é que me aconselha? Pergunta sacramental. Repete que não é aqui o seu lugar. P.e Baptistadeixara-ovir para o quartinho que, na década de 80, tinha ocupado… Digo-lhe o que penso/sinto sobre o Calvário e os Padres da Rua já idosos. Um problema que Pai Américo não chegou a viver – por isso não se pronunciou sobre ele. Assunto sério, a meu ver… Se Pai Américo chegasse a velho e doente, não iriam mandá-lo para um Lar / ERPI, onde passaria a ser o sr. Américo – igual a todos, como é lei, na vulgaridade das obras semelhantes…
Falo com P.e Júlio. Sinto-me apoiado. E P.e Telmo vai ficando. Entretanto, chega P.e Fernando – trazido por uma ida de P.e Telmo e P.e Júlio a falar da Obra aos padres de Bragança, com D. José Cordeiro… Como maná caído do Céu, logo depois, aparece P.e Alfredo. Mergulha neste «rio Jordão» para se «batizar» ao serviço da Obra. P.e Fernando, ainda quase sem ganhar raízes aqui, avança para Setúbal – onde P.e Acílio deu o que pôde, mas já não pôde dar mais. Logo de seguida, lá de Benguela, vem P.e Manuel, ultrapassado nos 80 anos e muito doente.
O comviver com estes dois sacerdotes da Obra da Rua, ambos nossos «heróis de África» e já idosos, desafia-me a ver este nosso Calvário com olhos novos. E lembro que foi com olhos novos que Pai Américo e P.e Baptista viram a Ação Social da década de 50 – quando o Calvário apareceu como «palavra tirada do Evangelho».
2. Deus é amor e também é humor… Talvez porque também eu já estou a cair sobre os 90 anos, adoro este meu aprender a comviver com os 100 — os meus e os dos outros, mais coisa menos coisa… Rezamos juntos. Rimos juntos. Ainda juntos, damo-nos o braço para irmos um bocadinho a desenferrujar as pernas. E isso faz toda a diferença no jeito de estarmos uns com os outros, porque todos nós somos 'uns' e somos 'outros'. E temos «laços comuns» de ser-Calvário…
Estou a ver P.e Manuel. Sentadinho no sofá, pernas estendidas e levantadas – porque a circulação já falha. Sempre agarrado ao breviário – a sogra, no humor da gíria eclesiástica.
– Filhinhos, nós já rezamos Laudes?!... Nós já rezamos Vésperas?!... E as Leituras?!… De tanto repetir o rezar e o pedir a P.e Telmo para rezar com ele, um dia o bom humor de P.e Telmo saiu-se com esta, que acho uma delícia de humor eclesiástico. – Já rezamos tudo muitas vezes... Se continuamos a rezar assim tanto, ainda vamos entrar pelo inferno dentro de breviário na mão…
Deus louvado! Ele é amor e humor…
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1. Rumino este COM+viver. Trago-o ao de cima. A ver onde estou. Ver se convivo num mero estar na mesma barca ou se COMvivo dando também ao remo para que a barca chegue a bom porto…
2. Versículo 3, da oração do Aprender a Envelhecer e Morrer…
Um admirador
[Escreve segundo o acordo ortográfico]