BEIRE - Flash's

O prazer de "ir às gaipas"...

Parece que a palavra «gaipa» cheira a regionalismo. As gaipas são o respigo(1) das vindimas. Certo é que ambas as palavras fazem parte da minha língua materna - uma cultura ainda viva, no meio rural. E lembro que gostava / gosto de ler Pai Américo porque também "ele falava cm'á gente e não se atrigava disso"... Depois, à medida que fui entrando na linguagem bíblica, sempre associei o «ir às gaipas» à história de Rute — a respigadora. Essa estrangeira moabita que, pela sua lealdade e devoção à sua sogra Noemi (e ao povo de Israel, a cujo Deus se entrega de alma e coração), busca o sustento através da respigagem nos campos de Boaz, seu parente redentor(2). E acaba até por entrar na linhagem de David — de cuja «descendência» nos veio Jesus, nosso Salvador.

1. O prazer de cortar uma gaipa... As imagens que das «gaipas» guardo da minha infância são tantas e tais que, desde que aqui cheguei, todos os anos por esta altura, sempre que posso «eu vou às gaipas». E porque este termo regionalista parece que tem a sua tónica em Trás-os-Montes, há dias dei com Pe. Telmo a «descongelar» esta palavra de que quase se tinha esquecido. E ele até acabou por me dizer «amanhã quero ir consigo às gaipas». E começou a descrever-me experiências de infância — ir às gaipas com os miúdos da nossa idade, em tardes em que não havia nem escola nem catequese! Fabricarmos as nossas ganchas!... Era uma festa. Antes da chegada da televisão, era um entretém das crianças…

Porque as pernas já não lhe permitem grandes arrufos para calcorrear o Gerês como dantes, meti-o no carro e lá fomos os dois… Porque já habituado ao campo, o meu Nissan Note entrou pela vinha dentro sem dificuldade nenhuma — o caminho já está aberto pelo manejo do trator usado no amanho da terra. Estou a ver a expressão dos olhos, naquele rosto centenar. Padre Telmo, menino feliz, num reencontro de infância não esquecida. Não me via a mim, via a ele. Mas, nele, eu também me via a mim…

Mostrava-lhe as gaipas onde elas eram pendentes, no bardo da vinha. Saía do carro, cortava e dava-lhas a provar — numa camaradagem de miúdos pró-centenários em gostosa folgança de tempos idos. Ajudava-o a distinguir as mais docinhas — porque mais expostas ao sol e já de cor a amarelar. Entro e saio do carro, numa doce repetição da mesma cena. Até que há um momento em que aparece uma gaipona, bonita, a fazer crescer água na boca.

Olhe para isso, Sr. Pe Telmo. Até abre o apetite à gente!...

— Deixe-me sentir o prazer de ser eu a cortá-la!...

Encosto mais o carro ao bardo. O vidro está descido. O braço de Pe. Telmo estende-se até à gaipa. Com o jeitinho de quem já praticou o bastante, agarra a gaipa pelo joelho que lhe é peculiar, torce e… a gaipa, inteirinha, linda, fica-lhe na mão. Um delírio. Leva-a à boca com a sofreguidão daquele tempo em que a fomita também era apetite…

2. — Fui às gaipas no meu quintal… Retomo a marcha. Sinto que esta crónica começa a nascer dentro de mim. O dia está ganho. Só por este flashzinho, neste Calvário a sonhar "caminhos não andados", valeu a pena ter nascido labrego, um rabosano, camponês… E, depois, ser guindado a aprendiz de vivente que não se cansa de buscar novas formas de expressar a alegria de viver. Tanto quanto possível descobrindo e ajudando a «revelar o segredo e a ciência da felicidade»…

Chegado a Casa, encontro a Lindinha — nossa preciosa colaboradora na recolha de sangue dos doentes, para análise, sempre que o médico manda que assim se faça. Porque trabalha num laboratório, ali em Paredes, porque é nossa vizinha e, sobretudo, porque já é a nossa Lindinha (que sabe sofrer com os que sofrem e alegrar-se com os que se alegram), metemos conversa. O tema de hoje eram as gaipas…

Ainda ontem fui às gaipas no meu quintal... Lembra-se como fazíamos uma gancha para apanhar as mais altas?!... Recordamos. Rimo-nos. Partilhei um flash de mais vida e vida em abundância.

Ai a festa que nós fazíamos quando encontrávamos uma gaipa que era um cacho escondido... O cuidado em encaixar a gancha no estrepe do cacho, fixá-la bem, empurrar com jeitinho até agarrar o joelho do cacho, torcer até quebrar e… descer muito devagarinho até chegar, sem mossas, às mãos da gente… Ah, não havia maior prazer!...

3. As gaipas são o regalo do podador... O sr. Machado chegou há pouco. Gosta de conversar e também traz histórias de «ir às gaipas». Partilhamos experiências. Lá no seu meio, «as gaipas são o regalo do podador», diz-me. Recordo o meu pai e meus irmãos mais velhos, em cima de escadas de 15 e mais degraus, a podar nas árvores e bardos de vinha de enforcado… Se aparecia um cacho desses que vale a pena, lá vinha a festa. Às vezes, até desciam para partilhar connosco, cá em baixo, a apanhar a lenha da poda. Porque, naquele tempo, tudo se aproveitava até ao tutano. A nossa economia era eminentemente rural. Por isso até nós ruralizávamos, éramos "meninos labregos"

_____________________________________

1. <Respigo é «aquilo que fica nas bordas do campo e/ou perdido no chão e que pode ser apanhado pelos pobres, após a colheita».

2. Na Bíblia, a palavra redentor tem o significado de «aquele que paga o preço de um resgate». Rute, estrangeira e viúva, estava condenada à condição de "mulher de ninguém". Moaz, seu parente por afinidade do falecido marido, podia resgatá-la, redimi-la. E foi o que fez…

Um admirador

[Escreve segundo o acordo ortográfico]