BEIRE - Flash's

1. Em silêncio e quietude… Ouvi a «chamada» e fui por aí fora. Devagarinho, tentando adivinhar qual a linguagem(1) que precisaria saber usar para me sentir acolhido. É a, já bem conhecida, voz (berreiro!...) do Diamantino. A porta do quarto está entreaberta. Espreito. A modos de quem pede licença para entrar. De tanto sofrer, não aceita mais ser incomodado… Tudo nele fala de chega de tanto sofrer…

Sem olhar sequer para mim, Diamantino continua na sua monocórdica ladainha — de berrarias… Porque não tenho pressas de entrar, vou dizendo, pausadamente e baixinho, coisas do tipo «se precisares de alguma coisa, Diamantino, eu estou aqui…». Sorrio. Espero todo o tempo necessário. Em busca do sintonizar(2) a minha mente com a mente dele.

Sem grande tempo de espera, Diamantino quebra a indiferença, baixa a voz, abranda o punho cerrado, volta para mim o olhar e… começa a falar. Já em tom normal. Ainda não o entendo bem, mas faço de conta que sim… Avanço e vou indo até ao pé dele. Estendo-lhe a mão, e tento ir respondendo a não sei o quê… Já tudo mudou. Percebi que queria mudar de posição — ir da cadeira para a cama. Prometi chamar «a mãe», fiz-lhe um afago, dei-lhe um beijo e retirei. Já estava sossegadinho. Pronto a esperar o que for preciso, porque os doentes são muitos e o pessoal é pouco. Mais — com as novas «nomenclaturas», são escassos os «voluntários» que ainda ouvem o chamamento dos tantos Diamantinos que há no mundo. Por razões diferentes, mas todos diamantini+zados pela vida que, neles, apareceu sem condições para desabrochar…

Na quietude daquele corredor, deixo-me a ouvir o silêncio de que, agora mais que nunca, ainda preciso — para tornar(-me) um voluntário de jeito… O sorriso que, do Diamantino, trouxe comigo acompanha-me corredor fora. Ouço «coisas» que já apreendi e preciso aprender a dizer melhor — «por detrás de cada criança ferida, há sempre uma criança original, alegre, meiga e feliz. À espera de ser libertada. Para partilhar-se no viver a sua plenitude»…

Passo dos nossos Doentes e Rapazes ao «nós e o nosso Pessoal de Cuidados» — técnicos, auxiliares e voluntários. Lembro Pai Américo — «técnico é aquele que ama»… Paro-me no sonho de uma sinodalidade que saiba passar do dizer ao fazer. Sinodalidade nos objetivos gerais e específicos do ISS e objetivos gerais e específicos de uma IPSS. Sinto a dor da falta de uma linguagem que nos seja comum. Uma linguagem que, sendo social, não deixe de ser também evangélica. E, sendo evangélica, não deixe de ser também social. Com os avanços que as Ciências do Homem vão exigindo na entrega a estas causas — única Causa de Deus.

2. Nossos «problemas de primeira água»Ouvindo-me no(s) meu(s) silêncio(s) e quietude, dou comigo muitas vezes de volta de problemas que reputo de primeira água. Sobretudo em instituições como esta — sejam elas da Segurança Social (ISS) ou de alguma IPSS. Porque, quer de um lado quer do outro, o que sempre está em causa é o homem integral. Aí onde o crente, habitualmente, vê a grande «Causa de Deus». E que a boa teologia de hoje diz ser «uma só e mesma coisa» — Causa de Deus / Causa do Homem. E vice versa.

Iluminados pela luz da Fé, não podemos abrandar na luta por uma sinodalidade eficaz — por mais assanhados que estejam os ventos… Move-nos a esperança de que «a barca não vai mesmo soçobrar». Isto é-nos atestado pelos três evangelhos sinópticos — Mt 8, 23-27, Mc 4, 35-5, 43 e Lc 8, 22-25.

Ainda com o sorriso do Diamantino a brilhar-me na menina dos olhos, subo até à sala de estar. Estão aí os Doentes e Rapazes, frente a um ecrã de televisão.

Paro-me à saída do elevador. O cadeirão da Tinita, mesmo ao lado da cadeira da Luisinha, quase me impede de avançar. Ouço o «por mais que se lhe diga, ela teima em empurrar o cadeirão para trás»… Não entendo bem o porquê é assim, mas é... De repente, vejo o insólito — Tinita levanta-se, escorrega para a cadeira da Luisinha e… fica ali abraçadinha a ela. As duas, derretidas naquele abraço fraternal.

Vou até lá trás — à nossa Criança Interior, hoje tão do interesse da Psicoterapia. Destaco coisas aprendidas e já bem claras dentro de mim. Somos assim esta «contradição» (tão bons e, ao mesmo tempo, tão mauzinhos!...). Porque, se calhar ainda no ventre da mãe, não fomos devidamente acolhidos e respeitados nesta fome de sermos reconhecidos e aceites com todo o amor de que precisamos… E hoje, sempre que, num gesto de «maternalização», alguém nos acolhe de tal modo que a nossa «criança original» se sente realmente acolhida e respeitada, ainda que só por breves momentos, ela salta cá para fora e resplandece em toda a sua riqueza: inocência, vitalidade, alegria de viver, segurança e criatividade.

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1. A «comunicação» (com+unic+ação) acontece através da «linguagem». E o mito da «Torre de Babel» (Gn 11, 1-32) já aponta para a dificuldade de uma linguagem comum. Mas todos nos sentimos nascidos-para-comunicar. Então… só nos resta mesmo aprender — desaprender e aprender de novo...

2. Sintonizar / Sinodalizar… Têm de comum o mesmo prefixo — sin, do grego, com

Um admirador

[Escreve segundo o acordo ortográfico]