
BEIRE - Flash's
Não deixar estancar a Fonte...
1. D'entre "flash's de Domingo"… Lembro que até fiz uma foto. Como que para ajudar a memória a registar o facto: «Ainda é tempo de ter / Ser Esperança»... Porque «ainda há filhos que…». Deixo-me tocar pela cena: Pai e mãe limitadíssimos. A mãe em cadeira de rodas; o pai, de canadianas, arrastando as pernas. Chegam no carro do filho. Vêm para a Eucaristia das dez. O rapaz sai do carro, tira a cadeira de rodas e, como quem «já está habituado a isto», desencadeia o processo de, a seu tempo, tudo estar já na capela, sem atrasar nada nem ninguém…
(Num de repente, sinto o turbilhão da problemática desta nossa velha e emblemática capela — bonita, mas a 14 degraus acima do solo. Para uma Comunidade de pessoas com deficiência. Pensar os acessos para as cadeiras de rodas, "acamados", os estropeados… Depois, a estética, a memória, a funcionalidade…)
Os rapazes chegam-se para ajudar a subir e para ajudar a descer. Até Pe. Alfredo, já treinado nestas coisas, também se chega… Depois, a dinâmica litúrgica, os cânticos, a homilia, …
Vão à comunhão os três — filho, no papel de cuidador, ajuda o pai e a mãe… No final, a mãe quer fazer uma oferta: — É pró Gaiato!… O filho chega a carteira à mãe; é ela que mexe em tudo o que é seu e tira de lá o que quer oferecer…
Sinto-me confiante. O mundo ainda não está de todo perdido. Precisamos é de aprender a ver e «não deixar estancar a Fonte» — essa que brota da Bondade Suprema, de que todos nascemos revestidos…
2. — Você já foi lá ver aquilo?!... Com algumas variantes, nela, aquilo já é quase um ritual. De manhã, quando nos cruzamos para o pequeno almoço, dispara: — já viu aquilo?!... Se eu não agarro logo o seu "aquilo", como que ofendida, ataca: — Ora, o que é que havia de ser?!... São os chuchus, as abóboras que me trouxe para eu arranjar!... E se a resposta é ainda não fui lá, mal me apanhe a jeito, quase me agarra pela mão num «ora venha cá», tão firmemente impositivo que tenho mesmo que deixar tudo para…
Gosto de parar-me a 'auscultar' estas 'maneiras de ser' dos nossos doentes. — Se não fosse aquela cabecita rota, diz-se por aí, como quem tenta compreender. Ainda é uma mulher válida e capaz. Pois, mas não atinge aquele vulgar grau de autonomia que vai permitindo a um adulto levar a sua vida por diante — sem estar dependente de alguém ou de alguma instituição cuidadora…
Procuro saber histórias daquela vida assim amarfanhada. Vejo feridas de não existência — como foi no caso do Chola, lá em, Miranda do Corvo, nas décadas de 1950/1960. (Ver O Gaiato, n.º 2028, de 04.12.21). Nesta nossa doente, é manifesta a ferida de não existência daquela atenção quanto baste que lhe teria permitido crescer normalmente. A mãe, também com suas feridas, não tinha tempo para ela. Servia-se dela para aguentar a barca sem ir ao fundo.
Geralmente, frente a estes casos tão frequentes, despachamos o assunto dizendo que gosta é de chamar a atenção. Pois, pudera não! Todos precisamos. Numa média de três horas dia — diz a ciência. E, em muitas ocasiões, até nós mesmos temos destes comportamentos anómalos, repetitivos e inconscientes…
Olho-os um a um. Gente ferida. A fazer-me sonhar um Calvário com muitos aprendizes de voluntariado para aqui, nestas circunstâncias. Porque os nossos habituais «esquemas de leitura» (o «coitadinhos!»…), para aqui, cheiram-me a ofensa à dignidade (sagrada!) da pessoa em questão.
3. Ensaios de Amor Firme… Desde que comecei a debruçar-me sobre esta temática, não me canso de a re+fletir(1). Sempre recordo aquela sessão pública das Famílias Anónimas, no Bonfim: «Com estas pessoas assim, não há outro método. Só com um Amor Firme é que os poderemos ajudar a sair daquele buraco»...
Ai quantos tesouros escondidos! À espera de quem compre aquele campo — para dali sacar as pedras preciosas que ali jazem enterradas (Mt 13, 44-58)... Ainda ontem, com Pe. Júlio à mesa de um café, senti toda a dificuldade de decidir sem «pecado» — nem de excesso nem de omissão. Pecar por falta de «mão firme» (mas adequada) ou por «excesso de rigidez». São pessoas feridas. Precisam de quem cuide, sem se descuidar muito. Era um rapaz dos mais velhos. Saiu à noite e, sorrateiramente, de manhã cedo, subia a Avenida para «estar em comunidade à hora do pequeno almoço». Histórias anteriores davam pé a que se desconfiasse… — Passou a noite fora e quer encobrir…
Mão firme para «não se deixar comer por lorpa» e coração grande para não esquecer as feridas de que são portadores…
É difícil conciliar essas duas posições, que parecem antagónicas. Mas é o papel de um pai — Padre da Rua! Porque ninguém nasce formado, todos somos poucos para nos formarmos uns aos outros…
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1. Re+fletir. Isto é, debruçar-me sobre esta dura realidade — gente com deficiências a precisar de gente que ajude a, mesmo assim com as deficiências que acarretam, ir para a frente. Revelar(-se) na medida do que, mesmo assim, ainda é capaz… «A quem nasceu para voar como as águias não se pode perdoar que passe a vida a rastejar como ave de capoeira».
Um admirador
[Escreve segundo o acordo ortográfico]