BEIRE - Flash's
... Até na morte do Sr. Padre
1. Alargar os horizontes do ser(-se)… Esta ideia, já bem experienciada na pele, de que nos compete a nós (me compete a mim!…) alargar os horizontes do meu ser-Abel e do teu ser-Joaquina, Alberto ou simplesmente Maria, esta ideia/experiência tem-me valido milhões. Não de euros ou quejandos — de que não preciso. Milhões de momentos mágicos — de que preciso, como do ar que respiro. Momentos mágicos vivenciados! Também aqui no Calvário. Na descoberta de como «os laços de amor se fazem sentir até na morte". Seja de "um sr. padre" seja de "um residente", aqui, sem família.
Aquela partilha enterneceu-me. E pôs-me a sonhar — penso que a sonhar queres de Deus. Dentro daquela do poeta: "Deus quer, o homem sonha e a obra nasce". Porque, ainda que o poeta o não tenha dito explicitamente, a coisa é sempre assim: Quando aparece um homem ou uma mulher a sonhar o querer de Deus, a obra começa a nascer… Aconteceu assim com Pai Américo, Teresa de Calcutá e, já mais recentemente, com Jean Vanier — um leigo, com uma acentuada vida espiritual, que sonhou a Arca e, logo depois, a Fé e Luz. Ambas para pessoas portadoras de deficiência. Obras nascidas perto de Paris, entre1964 e 1971. Hoje já estão presentes em muitos países — 35, a Arca e Fé e Luz já em 80. A fome de amor mantém-se. Parece que até mais pesada…
Olho a história de tantas vidas que conheci e/ou estudei. Olho a minha própria história — que vivo e estudo. Torna-se-me evidente que quanto mais um ser humano (homem ou mulher!) se deixa impregnar pelo desejo de acertar os seus sonhos pelo querer de Deus, mais a sua vida se vai tornando uma fonte de onde jorra «mais vida e vida em abundância». Porque o ser-humano é um ser-sonhador. E, se não sonha o alargado querer de Deus, tende a sonhar o reduzido querer do umbigo — sempre de volta de si mesmo… Porque Deus, ao fazer-Se carne para habitar entre nós, quer fazer-Se presente na vida de quem O acolhe. Estar-com quem deseja deixar-se guiar pelos Seu querer.
2. Uma partilha comovedora… Foi numa tertúlia do Telefone da Esperança — hoje Voades. O tema anunciado para a tertúlia era os Laços de Amor… À responsabilidade da directora de um Lar de Idosos. Há 15 anos atrás, ela esteve comigo no abrir dos alicerces do Telefone da Esperança em Portugal. Diz que foi aí que se sentiu chamada a ser, no Lar que dirigia, aquilo que era/é o sonho do TE para Portugal — acolher quem sofre e criar laços de amor…
Os seus colaboradores mais directos foram convidados a participar da mesma formação recebida no TE. Idem familiares e amigos. Agora, em equipa, vieram mostrar aos apoiantes da Voades, um pouco o por dentro daquele Lar. Pudemos ouvir: — No Lar, eu não me sinto um/a empregada/o: sinto-me em família, sinto-me na minha casa, empenhada/o em acolher e criar laços de amor. E logo de seguida, entra uma trabalhadora que, sendo um alicerce do Lar, é também um corrimão seguro na Voades:
— Eu gostava de partilhar uma coisa que nos comoveu a todas. Foi os laços de amor que se manifestam até na morte… Começa a relatar: — O Lar tinha um Capelão, um Sr Padre que serviu ali muitos anos. Depois, já inválido, acamou e passou a ser mais um residente — a receber cuidados. Cabia-me a mim cuidar dele mais em particular — banho, higiene, medicação requerida. Há tempos, já em fase terminal, pediu-me para ver a Sra Diretora, a Sra Enfermeira, mas comigo ali. Conseguimos juntar-nos as três no quartinho dele. — Queria despedir-me de vós e agradecer todo o amor com que me acolhestes e me tendes tratado… Comovidas, debruçaram-se sobre ele, abraçando-o e deixando-se abraçar por ele… — E partiu assim, a sorrir, abraçadinho a nós!…
3. Um Calvário sempre novo… Gosto de olhar de frente os tempos que correm. Ainda vejo neles muita beleza. Uma beleza ambígua, mas beleza. Esteve cá a Segurança Social. Não como inspeção… Só recolha de dados — para melhor nos conhecermos… Regozijo-me. Sonho um Calvário e uma Segurança Social, de mãos dadas, empenhados em tornarem-se instrutores um do outro. Como aprendizes da arte de beber da mesma fonte: o apoio integral ao irmão caído. Seja ele portador de alguma deficiência ou vitima do ataque do ladrões da nossa falta de humanidade…
Vejo os quase 70 anos do Calvário, com sua infindável lista de feridas que aqui foram cuidadas. Recordo também com prazer que, na grande opinião pública, «o SNS / Segurança Social foi a maior conquista do 25 de Abril». Vejo e alegro-me. Mas não esqueço que «a beleza pode ser vital ou mortal, profética ou anti-profética». Porque há nela uma ambiguidade radical que lhe é imanente — e todos sentimos isso na pele. Todos trazemos dentro algum Narciso que gosta de mirar-se no espelho das águas do próprio umbigo…
Desta ambiguidade, tanto pode nascer a vida como a morte — do Calvário e/ou d'aquela Segurança Social que Portugal espera. Como vida nova — a que todos somos chamados.
Pois. Mas, ai se a beleza do poder que têm é usada para impedir o nascer de novas respostas para os problemas que a sociedade reclama!…
Um
admirador