
BEIRE - Flash's
O sermão das pedras d'O Calvário...
1. Será mesmo só um velho 'corrimão' de velhos'?!... Verdade que, nós os velhos, gostamos de repetir as nossas histórias. Esquecidos de que elas, de já tão velhas e tão repetidas, podem estar a ser uma maçada para... Mas há delas que bem podem repetir-se. São "água mole em pedra dura..." Se bem ruminadas, podem alargar, sempre mais e mais, os nossos horizontes de ser - o grande desafio da vida...
P.e Telmo e eu subimos e descemos, muitas vezes juntos, aquela escadaria da nossa capela. Sempre lavadinha, a espelhar a beleza e variada gama de granito arrancado das pedreiras da nossa mata de fora. Seus degraus falam-nos do saber e bom gosto de P.e Baptista. E P.e Telmo gosta mesmo de desancar sobre as injustiças contra esta alma mater do levantar do chão este Calvário - último sonho de Pai Américo. E, puxa histórias que nos falam do Inefável que por aqui se espelha.
Não sou, mas gostava de ser entendido em mineralogia. A subir/descer cada degrau, já quase como quem 'pede licença a uma perna para arrastar a outra', lá nos vamos entretendo um ao outro - a ver se ainda conseguimos chegar lá cima. Já os contei. São catorze!repete-me P.e Telmo. E eu, fazendo conversa, meto muitas vezes o poema Impressão Digital de A. Gedeão - «... Nas ruas e nas estradas // onde passa tanta gente // uns vêem pedras pisadas // outros gnomos e fadas // num halo resplandecente». Uma vez que outra, recito-lhe o poema todo. - Diga-me lá aqueles versos de ... Eu já não tenho cabeça para ... Delicio-me em olhar as pedras, ver P.e Telmo a mastigar as palavras do poema. Uma delícia literária e um tratado de psicologia... - «De tudo o mesmo se diz // onde uns vêem luto e dores // outros descobrem corres // do mais formoso matiz.»
Este é o segredo da nossa Fé - poder ver, nas coisas visíveis, o Invisível de Deus que nos chama à trans(as)cendência...
2. À descoberta de "xenólitos"... Hoje, aquelas 'pedras pisadas', de A. Gedeão, viraram conversa do dia... - Olhe aqui, P.e Telmo. Está a ver esta mancha escura a escorrer ferrugem?!... Lembra-se do nosso Alex, que sempre vinha com o Pacheco e Luís Amaral? Ele é que, perito em minas, como Chefe, no Escutismo, gostava de repetir aos seus exploradores: «Ah, se nós soubéssemos ouvir o sermão das pedras!» Prossigo: - Lá para os entendidos, esta mancha provém de que há aqui um xenólito ferroso que, em contacto com o ar e a humidade, vai dando esta mancha que estamos a ver...
- P.e Telmo, sabe o que é um xenólito?!...
- Eu não. Eu sou um pobrezinho. Estou velho, já não sei nada. Nem estudei dessas coisas.
Porque o sei alérgico a toda e qualquer xeno+fobia, pego na palavra xeno (estrangeiro). E, à medida que subimos, vamos descobrindo os fragmentos de pequenas 'pedras estranhas' (xenólitos), encaixadas no granito que embeleza a escadaria. É fácil descobri-los: a cor, a forma, o tamanho, ...Tento explicar como é que, milhões de anos atrás, a coisa se foi formando - tudo era massa / magma amolecido... Aquelas pequenas 'pedrinhas mais duras' andavam ali perdidas a boiar e, entretanto, durante o desenvolvimento e endurecimento do magma... Falamos das 'dobras na pedra' do Geoparque de Arouca, de e de... Tanta coisa para ver! Preciso é educar os olhos...
Paro-me a contemplar. Cada xenólito tem sua cor, forma, tipo de rocha. Ouço o grito de cada um. São sinais, sacramentos, flahs's de luz... Todos à uma estão ali a dizer-nos que, no meio desta barafunda dos novos conceitos sobre Acção Social, não podemos deixar morrer esta «palavra tirada do Evangelho». Porque ele é de ontem, de hoje e de sempre...
3. De António Gedeão até Camões... Porque palavra puxa palavra, também poema puxa poema... Naquele dia, já depois da missa, agarrado à bengala, de um lado, e ao meu braço, do outro, começamos a descer. - Como é aquilo do outro que 'é melhor de descer que de subir', lembra-se? Acho que é do Camões!... Prometi imprimir o poema da «aventura graciosa de Fernão Veloso em terra», est 30-36, do canto V, d'Os Lusíadas.
Recordamos o nosso épico: «Disse então a Veloso um companheiro // Começando todos a sorrir: // - «Oulá, Veloso amigo! Aquele outeiro // É milhor de decer que de subir!» // «Mas, quando eu pera cá vi tantos vir // Daqueles cães, depressa um pouco vim, // Por me lembrar que estáveis cá sem mim.»
Para vergonha do meu passado, também eu já gostei e me treinei no uso da ironia - essa triste 'arte de morder sorrindo'... Hoje, recordo o sabor amargo desse tempo. Encanta-me é este saber dar a volta ao texto - como faz aqui o Veloso amigo... Recuo até Singeverga. Mons. Pereira dos Reis era o meu ídolo. Tinha deixado a glória do mundo para se esconder como um simples oblato de um mosteiro beneditino... Olhava-o como ícone da santidade, do saber e do bom humor. Para ele, esta passagem d'Os Lusíadas valia toda a epopeia... E com que encanto ele recitava para mim aquelas 6 estâncias do canto V. Com ele aprendi a gostar dos idosos. Com a morte dele conheci o chorar sem querer...
Que bem me sabe saborear, hoje com P.e Telmo, o bom humor deste episódio!
Um admirador