BEIRE - Flash's

A nossa "comunhão aos doentes"...

1 - Foi ao rezar o terço. Era domingo. O Nana anunciou: - Quarto Mistério - Assumpção de Nossa Senhora ao Céu. Desde manhã que eu tinha andado numa de a "lutar com Deus" - acho que fiz bem, mas... // Eles não têm tininho para entender... Não podemos deitar pérolas a... Mas também sei da Cananeia que ajudou Jesus a ver mais longe (Mt 15, 21-28)... Entretanto, foi ali que tudo se me tornou claro: - Nossa Senhora leva a cena com Ela para o Céu e Jesus trata disso... Até me ri comigo destas minhas racionalizações apostólicas, mas acolhi a deixa...

A coisa foi assim. Aqui há uns anos atrás, lá no seu entender de Deus, P.e Telmo, na sequência do levar a Comunhão aos doentes acamados, deu a Comunhão também à Tinita. Ela estava ali a olhar para ele, como que ougada... As outras estavam a ter uma atenção que ela nunca teve... Condoído, P.e Telmo deu-lhe a Comunhão. Mais ninguém viu. Só os dois. Mas, à hora do jantar, vou com P.e Telmo para ajudar a dar de comer... Ao ver o carro chegar, a Tinita corre para P.e Telmo, dá-lhe um abraço e tartamudeia: - Bigado poque hoje deu a mim a Comunhão!... Vi, ouvi, enterneci-me. E já vo-lo contei nestas páginas. Desde então, desencadeou-se aqui no Calvário uma teologia de vanguarda. Nós é que somos pecadores... Eles são uns santos. Podem comungar Jesus todos os dias. Estão mais preparados do que nós... Jesus vai ficar contente...

Veio o P.e Fernando e alinhou connosco. Até fizemos uma festa de Primeira Comunhão de umas tantas e uns tantos - que foram por nós preparados, Deus sabe como... Depois, com P.e Alfredo, passamos a levá-los todos para a Capela. Uma festa! Gente feliz que eu nunca tinha vindo aqui... Era o sair do cantinho onde carregam a sua cruz. Era o apanhar o sol e o ar puro da mata... Tudo razões para vislumbrar uns chiskinhos de Paraíso... Tudo tão simples para quem nunca teve nada...E a coisa ficou a funcionar assim:

Se o tempo deixa, vão todos prá Capela. Se não deixa, à hora em que na Capela é distribuída a Comunhão a quem está, vou eu levá-l'A aos outros que não puderam vir. Para mim, aquilo é um delírio de comoção, de reverência e de contemplação ruminativa!... Que sabemos nós de Deus?! Sei é que nos faz bem tratá-l'O bem, assim, nestes Seus filhos - que Ele confiou aos nossos cuidados. O ritual que sigo é sempre inspirado pelas circunstâncias de momento - ... tem de esperar, que a D. X quis ir ao WC; tem de chamar por ela, que está a dormir; ele hoje está muito ausente...

Há dias, porque foi a última doente a quem dei a Comunhão nesse dia, e por que estava sozinha no seu quarto, em cadeirinha de rodas, fiquei um bocadinho a dar graças com ela. Peguei-lhe na mão e tentava conversar ao sabor do espírito... Porque ela tem momentos em que anda por lá - com o sr alzeimer... Mulher amargada pela vida, olhava-me fixamente, entre sorrisos e lonjuras... Enterneci-me. Faço sinal de me despedir. Surge o inesperado: - Oh, dê-me beijinho!... Encostei minha cara à cara dela. Os dois em silêncio. Tudo tão simples e natural! E vim embora mais enriquecido - como Carlos de Foucauld, que não queria converter ninguém. Apenas ser irmão de todos...

2 - Leve também para o Sr. Neca... Chegado o momento próprio, aproximo-me do altar. P.e Alfredo preside. Dá-me a Comunhão a mim, pega na caixinha Porta Sacramento, olha-me, sorri, e volta atrás... Acrescenta mais uma partícula - leva mais uma e dê também ao Sr. Neca.

Saí da Capela e dirigi-me onde os doentes são - em resignada espera por um bocadinho de Paraíso a cuja porta, no comovedor dizer de Bento XVI, demora tanto a chegar... Compenetrado da minha missão, ia imaginando o que podia acontecer se o Sr. Neca estivesse ao pé do Valdemar - ele ia querer também d'Aquilo, que ele não sabe dizer o que é mas sabe reverenciar... Já vos contei aqui histórias em que eles nos revelam que, apesar de suas deficiências, também neles "a alma é sempre perfeita"... Valdemar é dos nossos doentes mais profundos. Mas há momentos em que parece superar as limitações do corpo e arranja formas de mostrar-se como bonita imagem e semelhança de Deus. Sei que só os olhos da Fé é que vêem isto. Mas a Fé pode habitar o coração do homem. E o coração vê mais longe do que os olhos...

Pois, se bem o imaginei, melhor o vi acontecer - sentado na sua cadeirinha, o Sr. Neca, alheado de todo, estava reclinado sobre o braço da cadeira do Valdemar e dormitava... Discretamente, parti a partícula em duas e, no mesmo gesto ritual da Liturgia, dei a Comunhão a cada um. Sr. Neca abre a boca, olha-me como quem toma um remédio e continua lá nesses mundos a que a ciência chama demência... Valdemar, em reverência que comove, abre a boca, saboreia. Tira um bocadinho para ver, torna a pôr na boca e volta ao seu fio de nylon, onde encontra a segurança de quem se sente ocupado e útil, a cumprir a sua missão.

Venham lá os psicólogos, a neurociência e quejandos a explicar isto - que nem sequer sabem ver...

Um admirador