BEIRE - Flash's

... Eu nunca tive um Paraíso assim!...

1. Ao calor da fogueira... O clima relacional era mesmo de um 'ao calor da fogueira' - a lembrar as crónicas dos anos 60, do sr. Cónego Amado. Era no Amigo do Povo, o jornal mais popular na Diocese de Coimbra. Uma espécie de edição caseira d'O Correio de Coimbra. Que, creio eu, terá sido nestas páginas que a pena de Pai Américo começou a fazer furor. Naquilo que, depois, veio a dar n volumes com o nome de Pão dos Pobres.

Bom. O ambiente era propício. Na mão de cada um dos presentes, um cálicezito de qualquer quod ore(1). O ar próprio e apaziguador de quem "sabe saborear estas coisas boas que Deus vai criando para os seus amigos". De permeio - uma historiazinha d'os meus meninos de Angola; uma anedota fina (à inglesa...) de P.e Alfredo. Um admirador a observar e a deixar-se tocar. (...). Tudo em sintonia perfeita - para treino da tão desejada (porque tão necessária!) sinodalidade, que já tarda.

P.e Telmo, como é próprio dos seus 97 anos, entra e sai do momento que se está a viver. - Já está noutra, vamos esperar - dizemos nós. - Ele volta já! Sabemos que assim é. Pela idade. Pelo seu jeito de poeta místico. Pelo seu passado, que o preparou para ser, hoje, aquele santinho de Portugal(2) que escreve aquelas coisas tão bonitas... Pelo seu presente que, mesmo velhinho e tontinho (sic, da boca dele), é um precioso ex-libris, emblemático de um Calvário que, lembrado da palavra paulina, acolhe também os seus domésticos na Fé (Gl 6,10).

E foi assim, neste ambiente familiar, que P.e Telmo disparou: - ... mas isto é um Paraíso! Eu nunca tive um paraíso assim!...

Nada foi profanado com a fotografia indiscreta. Mas estava ali aquele olhar e aquele sorriso de menino que D. Milu(3)  já registou em tela. Rumino e somo a momentos semelhantes aqui vivenciados. Em que saem assim coisas que me falam da Presença Ignorada de Deus na vida das pessoas e das instituições que elas criam. Fecho os olhos e dou graças. Sinodalizado na minha velha litania que aprendi de meu pai - Deus louvado!

2. Calvário - um lugar bom para morrer. De olhos fechados, mas de coração vigilante, divago. Vejo P.e Manuel ali sentado no sofá onde, agora, estou eu. Releio a sua (penso que penúltima) crónica n'O Gaiato. Sublinho - o Calvário é um lugar bom para morrer. Sei das dificuldades que teve (e que criou), por um certo e compreensível apego(4) a Benguela e aos seus meninos. - Eu vim porque me mandaram vir, ora!... Eu queria era ficar lá... Pois. Mas uma Casa do Gaiato não foi pensada nem criada para ser um Calvário. Muito menos um Lar de Terceira Idade, uma Residencial para Idosos - na vulgaridade das obras semelhantes... Como querem fazer de nós. Não senhor. Haja quem ajude o idoso a ver melhor. Com os olhos do coração, sim, mas também com os olhos da razão - esses que a terra há de comer...

3. - ... O lugar dele é aqui, perto de nós!... Foi no fim da Eucaristia. Entregou uns mimos para a Casa. Cumprimentou conhecidos e amigos. Rapazes e alguns doentes já da nossa mobília... Conheci-o há pouco tempo e ainda conversamos pouco. Mas tudo tem um começo. Contou-me a história dele e de um primo que, com a sua mulher, ajudou muito o P.e Baptista a levantar esta Obra. Falou desse tempo e de como se tornou também um admirador de P.e Baptista e desta Obra. - Tem aquele feitio, mas olhe que quem souber lidar com ele, ele é mesmo uma pessoa fora de série. Eu devo-lhe a vida...

Narrou revezes e coisas de que ninguém está livre. - Eu só pensava em matar-me... Fui trabalhar para esse meu primo e ele trouxe-me aqui, a P.e Baptista. Eu percebia de laboeira. P.e Baptista andava a levantar a vacaria. Conversávamos muito. Eu dava as minhas ideias, mas ele... Só que, tempos depois, lá estava ele a fazer como lhe tinha dito... E sempre nos demos bem.

A conversa continuou ao correr da língua. Naquele conversar de nada que tanta falta faz nos tempos de hoje. Sobretudo em ambientes de família. Porque sem isso ela morre. Aos poucos, sim, mas vai morrendo, morrendo, para definhar mesmo. Porque, sem laços de coração, os laços de sangue até podem tornar-se perigosos. Precisam da força dos laços de coração para ganhar rijeza, aguentar-se no tempo e nas intempéries...

Depois, continuou: - Sabe, eu às vezes sinto-me mal. Quando soube que ele já não estava aqui, apeteceu-me ir lá vê-lo. Mas não sei ir sozinho. Se algum de vocês fosse comigo, eu gostava de ir vê-lo. Penso que o convencia a vir para aqui. Porque aqui é o lugar dele. Aqui estava perto de nós. Foi ele que criou tudo isto. O lugar dele é aqui. Como esteve P.e Manuel e como está P.e Telmo...

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1 - "Quod ore" - expressão latina que significa qualquer coisa (quod) para meter à boca (ore).

2 - Joanika L.Tomé, 95 anos, que não dispensa aquela leiturinha, em momentos de maior fragilidade.

3 - A nossa D. Milu é a retratista Maria de Lurdes Chichorro, presente em galerias de alto gabarito.

4 - Esta palavra é ambígua. Porque o desapego pode ser tão condenável como o apego desmesurado - a raiar apegodependência, em que a pessoa já não sabe viver aquela coisa...

Um admirador