
BEIRE - Flash's
Chola, o menino ferido...
1. - ... Se tu soubesses da minha vida... Pois! Todos ouvimos isto e, às vezes, também o dizemos. Assim como que a pedir compreensão para... Mas penso que nem ele sabia da sua vida. Conheci-o na Casa do Gaiato de Miranda do Corvo. Foi no princípio da década de 60, séc pp. Já não era um batatinha, mas ainda pertencia ao grupo dos pequenos. Uns sete a oito anitos. Estou a vê-lo. Sempre de velas acesas, amarelas, grossas, com a monca espalhada pela cara. Urgido pelo seu grupo de pertença, se não podia fugir, varria terreiros e apanhava azeitona. Mas sempre e só como quem vive o medo de morrer de fome... Para ele viver era procurar que comer. Hoje, entendo - estava ferido pelo morto de fome...
De noite, eu tinha por missão acordá-lo(s), levanta-lo(s) e pô-lo(s) a fazer xixi, de tantas em tantas horas. Porque, senão... Aquilo era uma desgraça - de grossibus et de finibus sobre os lençóis lavados...
Em seu nome de guerra ele era o Chola. Sempre o conheci assim, nem precisei saber o seu nome verdadeiro. Sei é que foi/é ele o meu grande mestre, na difícil arte do aprender a com+viver, saudavelmente, com as constantes e inevitáveis contradições da vida. Era um ser humano mais que estranho. Eu era um insipiente aprendiz da difícil arte de amar. E ele era uma criança bem difícil de amar. Sempre fugidio. Meio bicho de buraco. Cabelos no ar, ares de augado, meio vergadito de tanto olhar pró chão, à procura de qualquer coisa que pudesse meter à boca.
À hora das refeições, era o primeiro a chegar à porta do refeitório. Punha-se mesmo coladinho a ela, não fosse algum atrevido roubar-lhe o lugar d'o primeiro... Quando o chefe abria a porta e todos mostravam as mãos lavadas, se conseguia passar sem ter de voltar atrás para ir de novo lavar bem as mãos, a caminho da sua mesa, o Chola sempre botava a mão a algum bocado de pão, que logo despejava goela abaixo. Depois, toda a comida era boa... Tudo lhe servia. Se algum dos colegas de mesa era mais biqueirito e não gostava ou deixava algo no prato, Chola não tinha problema - ia tudo. (...). Só mais tarde é que percebi o p'OrQuê ele era assim. Ainda me dói, só de vo-lo contar.
2. Ferido pela 'não existência'... Por exigência d'A Vida(1), passados anos, virei aprendiz de Análise Transacional. Foi a minha paixãozita AT; já profissionalmente destacado para formador na área das Relações Interpessoais... Sentia-me mesmo empenhado em aprender a explicar os esquisitos meandros do comportamento humano. Eu próprio me via tantas vezes assim contraditório - "não faço o bem que quero e faço o mal que não quero..." (Rom 7, 15). Alertado pelo princípio de que "nada sucede sem alguma razão", senti necessidade de descobrir a história deste menino. P.e Horácio ainda era o pai da Casa do Gaiato de Miranda do Corvo - hoje aos cuidados do nosso P.e Manuel Mendes. Uma Casa por onde também eu tinha passado.
Voltei a Miranda a indagar. Senti-me bem recebido. P.e Horácio lembrava-se de tudo. Talvez isto até conste de alguma Tribuna de Coimbra, n'O Gaiato daquele tempo. Sei é que eu mesmo, arrepiado de todo, ouvi a história do Chola, da própria boca de P.e Horácio que o recolheu, nas Latas da Conchada, em Coimbra. Ouvi. Envergonhado de mim mesmo porque, ignorante, alinhava com as "autoridades da Casa" nas malas-artes de querer educar o Chola à maneira dantes. Então, tomava-se à letra o velho ditado (sábio, mas perigoso) de que de pequenino se torce o pepino... Ferido profundamente na sua luta pela sobrevivência, o Chola não torcia nem à lei da bala; não houve maneira de o educar. Porque teimávamos no entrar por fora. Mas aquilo vinha tão lá de dentro que não houve maneira. Tinha sido preciso amá-lo por dentro, até ao ponto (bem difícil!) de o acordar para a necessidade de aprender a amar(-SE) a si próprio, bem por dentro, apesar de tão ferido.
Por falta d'ISSO, resistia a todas as nossas tentativas de torcedura. Sempre num jogo psicológico(2) de polícias e ladrões, em que se tornou um grande mestre. Porque arranjava sempre mameiras de enganar a vigilância e surripiar aquilo que, para ele, era comida - nem que fosse do tanque da lavagem (vianda) que, por um cano de esgoto, descia da copa da cozinha para o aido dos animais... Aquilo era sabido - o Chola saía do refeitório e corria para o tanque, onde sempre havia um pau - para mexer os fundos... Cascas de fruta ou de batata, bocado de pão que ali boiasse ou viesse à tona quando mexido, Chola botava a mão e engolia...
(Estou mesmo a chegar lá... Pois, mas o meu espaço já se foi. Se queres saber o resto, volta no pf n.° 2024, d'O Gaiato).
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1 - Sempre que escrevo esta expressão, lembro aquela de que, "hoje, são já muitos cientistas que estão de acordo em que Deus, Vida e Amor, são uma só e mesma coisa". Não sou cientista, nem filósofo, nem teólogo, mas sinto-me também, e muito!, nessa linha... Se for caso disso, que Deus me perdoe...
2 - A expressão 'jogo psicológico' é um dos Dez Instrumentos da Caixa de Ferramentas que a AT é. Uma óptima grelha de leitura para desmontar as nossas relações de auto e hétero engano... Pena ser tão mal conhecida. Será que todos temos assim tanto medo de nos conhecermos e nos deixarmos conhecer?
Um admirador