
BEIRE - Flash's
1. Da janela dos meus olhos… Tinha o dom da palavra — falada e escrita. Via-o em Coimbra, ainda no auge da sua carreira como sacro pregador de vulto. Depois, já uma reliquiazinha do que fora, tratado com todo o desvelo por pessoa amiga que dele «tomou conta». Estou a vê-lo, em Benfica, no seu hábito de franciscano, já incapacitado de comunicar — a não ser por escrito. Levado pela mão de uma «cuidadora informal» (avant la letre…), ia dar o seu passeiozinho diário. Foi-me 'apresentado' como o nosso querido Tio Mário e dele me falaram com muita veneração. Logo soube de um livrinho seu — Da Janela dos Meus Olhos… Que, pelo título e pelo conteúdo, me cativou deveras — porque são flashs da vida real que todos podem ver, mas só uns poucos afortunados captam o «sacramento» que neles se esconde…
Tive a feliz sorte de ser habituado a levantar cedo para «acordar a aurora» (Sl 108, 2). E, nesta manhã de junho, já a despedir-se da Primavera para dar lugar ao Verão, ainda antes das 6h da manhã, paro-me extasiado, na janela do wc. Dali, vejo a ramagem frondosa das árvores que rodeiam a nossa emblemática «capela espigueiro». Estendo o olhar até à Serra de Louredo e logo às fraldas da Serra da Agrela. Paro-me a ver e ouvir. São as rolas, as poupas, o namoro assobiado dos melros, o grasnar dos gaios, … Ao longe, é o casario que se aninha na Serra. Tudo começa a despertar do sono da noite…
Vejo. Ouço. E, porque já vou «compreendendo»(1) o meu cérebro, dou-me conta das mil e uma leituras «sacramentais» que, da janela dos meus olhos, eu vou fazendo de toda esta miríade de manifestações do «mistério central da vida». Essa que pulula em mim e se me revela, ali à minha frente. São momentos de sonho. Bocadinhos de paraíso, ainda nesta terra.
Encontro-me com O Papa Francisco, já desde Buenos Aires: «quando rezo, Deus respira em mim». E também já nos via a todos como «feitos da mesma massa de Deus»…
2. Da Argentina, à Madeira e Açores… Minha mãe, de quem muito me orgulho, era uma camponesa analfabeta. Mas gozava da sabedoria de «um coração puro» (Sl 53). Dela aprendi que «Deus só se vê com os olhos da Fé» ou, noutra forma que também usava, «com os olhos da alma». Sei que tal jeito de dizer(-se) é uma linguagem confessional. Depois, aprendi a dizer o mesmo em linguagem laical — que, no meu entender, junto de Deus, tem o mesmo valor. Importante é que se diga, para que todos possam primeiro apreender no intelecto e, depois, aprender na prática. Hoje, as ciências do homem, alertam para o peso das nossas primeiras experiências sobre o nosso cérebro. Como elementos facilitadores e/ou inibidores do subsequente lidar com a vida depois em adultos. E cada vez me encanta mais o saber que sempre mantemos o nosso poder de opção — para, se necessário, redecidir por onde queremos traçar o nosso futuro — atados a um passado inibidor ou, já livres, buscar o nosso próprio jeito liberto e libertador de ser(-se)-no-Ser...
Agradecido a estes dois grandes mestres no meu caminho(2), somando a tantos que também exerceram sua poderosa influência, dou-me conta de que, quase sem disso ter grande consciência, fui aprendendo a «ver Deus em todas as coisas»(3). Até chegar aqui — à janela deste wc. Através «da janela dos meus olhos». Sinto-me assim «um sortudo» por saber:
a) «ver Deus» neste Calvário — «palavra tirada do Evangelho»;
b) «ver» que «toda a ação social ou é também ação evangélica ou já não é ação social nenhuma».
c) E «ver» também o vice-versa… Isto é, «ver» que toda a «ação evangélica» que não seja também «ação social» pode virar mito que logo redunda antievangélico (1 Jo 4, 12-21).
Da Argentina, passo à Madeira. Recordo: há uns bons anos atrás, sentado no carro do BBI, ao serviço de quem ali trabalhava, lia as páginas de um Diário, na Reader's Digest. Fixei aquela carta de um pai camponês (sábio!) que escrevia ao filho que fora estudar para a cidade: — «arranja tempo para ouvir a voz do vento, os grilos do campo, o canto dos passarinhos… Essa música de Deus trazer-te-á de volta e impedir-te-á de enlouquecer..."
Passo da Madeira para os Açores onde estou também em serviço do BBI. Ouço um formando contar experiências que nunca mais esqueceu: «Atravessávamos uma canada(4), por entre campos de milho. Corria uma brisa que fazia mexer a folhagem do milheiral alto já amadurecido. Era uma música típica. Recordo muito bem. Meu avô, que me guiava, saíu-se-me com esta: — Escuta esta música de Deus. Faz bem à alma escutar isto».
A expressão «música de Deus», assim usada, de um e do outro lado do mar, nunca mais fugiu. Ainda a guardo comigo. Porque, com tais mestr@s, eu aprendi a ouvi-la. E, com ela, nesta manhã de junho, aqui no Calvário, todo me delicio…
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1. Lá da Psiquiatria, fixei para meu programa do quotidiano: Se quer melhorar a sua vida, compreenda o cérebro e aprenda a gerir as Emoções.
2. A mãe, analfabeta, e o Papa Francisco, notável professor de Filosofia…
3. Resposta dada pelo entomologista E. Fabre quando, em 1910, numa homenagem que lhe foi prestada, o questionaram sobre a sua crença na existência de Deus…
4. Nos Açores, uma canada é um caminho estreito que, habitualmente, era rodeado de canas.
Um admirador
[Escreve segundo o acordo ortográfico]