
BEIRE - Flash's
Nem sujo, nem por limpar...
1. Pela voz das crianças... Aquela ideia bíblica de que, muitas vezes, Deus nos fala pela voz das crianças sempre me tocou e continua a tocar... Até porque, hoje, tenho maior facilidade de ver e ouvir em tudo esse "Deus da Vida" que a todos habita, independentemente de suas crenças. Ver e ouvir - sobremaneira, no desabrochar da vida - a revelar o Seu Mistério Central. Esse/ISSO a Quem Jesus chamou de Abba - Pai Mãe, em Quem todos somos e vivemos. Porque n'Ele respiramos, n'Ele nos movemos, n'Ele ex(s)istimos e n'Ele nos mantemos (Act 17, 28-30)1. Gostava era saber fazer-me compreender, quando, por um imperativo maior, escrevo coisas destas que tanta vida vêm dando à minha já longa vida. Enfim, limitações próprias de uma transcendência encarcerada numa limitadíssima imanência - que é o que todos somos. À espera da hora da verdade! Uma bonita expressão popular para significar a hora da morte - passagem do agora passageiro para o agora sem ocaso. Essa hora bendita em que toda a vaidade se apaga e ficamos pr'ali assim, naquela linguagem que, correntemente, é bem traduzida pelo consabido é a vida, é isto a vida. E não vale a pena andar a armar aos cucos...Tudo passa. Só Deus não muda. Por isso a Fé me encanta tanto - como um culto que é preciso cultivar,um cultivo que é preciso ir aprendendo, e uma cultura que, quando bebida no leite materno e bem trabalhada depois, faz com que quanto mais a noite é escura mais aquela Luz sabe a ternura.
Passei, vi aquele desarranjo na gaveta dos talheres. Vi, mas deixei tudo como estava - para posterior aproveitamento de uma liçãozita sobre os valores da disciplina, dos rituais, bons hábitos e rotinas, numa Casa como esta. Coisas que fazem parte da desordem organizada de uma obra de doentes, para doentes, pelos doentes - sábia visão de Pai Américo e de P.e Baptista. Entretanto, não tive tempo de sair. Ela chegou e, no desempenho das suas tarefas de pôr e limpar as mesas do refeitório, dá-se conta e começa a reclamar: - Quem é que fez este lindo serviço?!... Nem está arrumado nem por arrumar. As coisas têm o seu sítio. Isto não é assim!...
Dei um reforço positivo ao seu zelo pela limpeza e boa arrumação. Saí do refeitório e fui dar uma mãozinha na casa da hortaliça - onde faz tanta falta um/a voluntário/a que, volta e meia, passe por ali numa de terapeuta ocupacional e/ou de educador/a social. Não já no sentido académico do termo, mas no sentido de uma vida em família, sempre a nascer e renascer - com filhos de muita mãe...Uma família em que cada dia é um recomeço...
Daí a nada, chega ela e prossegue: Também aqui é a mesma coisa - nem sujo, nem por limpar... Atira-se à tarefa e, depressa, deixa tudo num brinquinho...
Tenho andado a ruminar aquelas e outras cenas da mesma doente - um curioso sinal de contradição. Se o disco está nessa faixa, dá gosto vê-la e ouvi-la. Mas, por um dar cá aquela palha, se o disco vira, aquela mulher carinhosa, disponível, limpa, despachada, ..., apetece dizer que estou a ver outra pessoa. Capaz de tirar a paciência a uma pedra... Nesses momentos em que sou posto à prova, naquela criança louca, ouço Deus a gritar-me: - Vês o que acontece quando não há ninguém a dar uma ajuda para que possa crescer(-se) direito?!... Sinto-me urgido a aproveitar bem o tempo que me resta.
2. Uma 'universidade' para voluntários... Cá nas minhas andanças, lembro muitas vezes P.e Baptista, com o nosso cafezinho e os nossos passeios pela mata, depois de servir os doentes. Já não sei precisar o pé da conversa, mas deixei sair um isto aqui é uma verdadeira escola; há sempre algo novo para aprender. Riu com aquele riso que lhe é peculiar, e prossegue: - Escola?!... Isto aqui é uma universidade. Pena que as universidades ainda não lhe tenham pegado para entenderem o que isto é.
Quanto mais me adentro e me adenso neste Calvário - 'palavra tirada do Evangelho' onde vai beber todo este sabor divino que se derrama e embebe esta obra humana - mais me sinto habitado pelo mistério do amor de Deus que nos habita. Mesmo sem disso darmos conta. E, com o nosso P.e Quim, de Benguela, apetece-me gritar aos quatro ventos Vinde Ver... Se ouvires a voz do vento, querendo-te chamar, a decisão é tua...
3. ... pela transformação das vossas mentes. Não vou chorar o tempo perdido. Se calhar, o peso desse vazio foi-me útil e necessário para a grande DES+coberta - a riqueza e eficácia do trabalho interior para perceber aquela do Sl 119, 14-38: - "habituei o meu coração a encontrar prazer no cumprimento dos vossos mandamentos". Depois retomada por S. Paulo (Rom 12, 2): - Renovai as vossas vidas, pela transformação das vossas mentes.
Hoje sei que Pai Américo, P.e Carlos, P.e Baptista, P.e Horácio e P.e Acílio, através d'O Gaiato, deram uma boa ajuda na minha 'transformação'. Mas, penso e sinto que são estes anos de voluntariado aqui no Calvário que estão a fazer o melhor de tal operação. Desafio os inquietos a que venham e se dêem tempo para aprender a ouvir a Voz do Vento...
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1 - S. Paulo refere este texto como de 'um dos vossos poetas'... Esse 'um' foi Arato, séc III A.C.
Um admirador