BEIRE

1. Aqui em Casa, cada rapaz, cada doente é uma especialidade... Gostava de saber apresentar-vos o nosso Tirapicos. Uma especialidade típica entre os nossos - todos rapazes especiais. Crianças que, na linguagem de hoje, seriam inscritos no Ensino Especial. Esse ensino que, em tantos casos, por um excesso de tecnopatia e uma grande deficiência de coração de mãe, não ensina nada. Fraqueja redondamente. Entretanto, são esses de quem P.e Baptista conseguiu fazer rapazes integrados numa Comunidade que, de especial, só tem o não desistir de tentar ser Família para os sem família.

As ciências da medicina social dão muitos nomes a este tipo de rapazes: esquizofrénicos, autistas, mongoloides, deficientes, atrasados mentais, sei lá eu o quê. Tudo fracassadas tentativas de arrumar numa gaveta aqueles que não cabem em gaveta nenhuma. É o fugir à Família (modelo Nazaré...) que, porque implica o coração, não cabe nos standards das ditas Ciências Humanas. Nem muito menos nos moldes de um Governo de Estado... Tantas vezes com modelos tão desumanos que até arrepia. Porque o Humano só é verdadeiramente humano quando nele há lugar para o divino - que está inscrito no cerne da gente(1).

Bom. O Tirapicos, Paulo Sérgio de seu nome, chama-se assim porque, quando a areia é demais para a sua camioneta, ele descarrega logo tudo - esteja onde estiver e esteja quem estiver. E o primeiro que faz é ir à roupa da cinta para cima. Rasga, rasga, rasga. Mais: quando anda assim, enquanto não passar, gosta de dormir em chão estreme. De preferência nos montes ou nos campos.

Nos últimos dias, Tirapicos tem andado com o Marcelo a apanhar a lenha da poda... Sempre que passo por eles, Marcelo em cima da escada e Tirapicos em baixo a apanhar a lenha, tenho o cuidado de dizer: - Ena, Paulo Sérgio! Marcelo poda, Tirapicos apanha a lenha. Grande dupla!... Marcelo sorri e Tirapicos, mesmo sem entender a palavra dupla do grande dupla, sorri também e não para de arrumar a lenha que cai da ramada.

Parei e disse: - Ó Paulo Sérgio, tu hoje estás a portar-te bem. Mereces um chocolatito... (Até se lhe arregalam os olhos...). Resposta imediata: - Sim, mereço. Estou a trabalhar muito. Tem uma tablete?!...

Já ao lusco-fusco, ao ver-me chegar a Casa, corre atrás de mim, a ver se... Acolhi. Mas porque outros vieram também com ele e eu não tinha para todos, fui buscar e disfarcei... Mas Tirapicos não larga. Olha mãos, olha bolsos, interroga se há ou não há... Vou-lhe fazendo sinais de que é segredo, porque não há para todos...

Ai o sorriso dele quando, às escondidas, lhe dei a tablete!... - É só para mim?! - Sim, mas é segredo. Meus olhos pecadores viram o menino mais feliz do mundo... O Monte Tabor, aconteceu aqui em Beire. Lembrei os ougados e o bolinho comido atrás da porta...

2. Uma palavra de Pai Américo... Ando numa de "sacar vida" das "palavras que me dão vida". Isto é, ando numa de "re+suscitar" as palavras-múmia de um "espírito encerrado" algures, em letra morta, a gritar pela sua libertação... Hoje, aconteceu assim:

Fui ao wc da Casa Mãe do Calvário. Pousado no parapeito da janela, estava o vol 3 d'O Calvário - de P.e Baptista. Ri-me de mim para mim e lembrei que lá em casa sempre há um livro à mão... Recordei P.e Carlos e o que ouvia dizer de Pai Américo: - Sempre levava o jornal consigo. Ficava p'ráli tempos sem fim. Muitas das suas crónicas nasciam lá. Sei que, quando estudava A.T.(2), descobri o porquê d'aquele lugarzinho ser assim uma fonte de inspiração... A Mãe Terra (deusa Geia/Gaia, dos gregos) é muito sábia. Tudo o que faz é para The Common Good of Humanity. Assim nós o saibamos descobrir.

Leio e releio: O Calvário é um nome tirado do Evangelho. É o resumo de toda a economia da Redenção. Fazem falta no mundo estes nomes, estas ideias, estas Obras humanas de sabor divino. Voo até à Escola de Espiritualidade e pego no livro "A Revelação de Deus na realização do homem". Rumino. Pai Américo e T. Queiruga - teólogo de vanguarda, prof. emérito de História e Filosofia das Religiões, na Universidade de Santiago de Compostela - comungam a mesma Teologia.

Prossigo: Um lugar onde cada padecente leve, sim, mas não arraste a sua cruz dolorosa. Olho as obras exigidas por lei. Recordo P.e Fernando no nº 1990 d'O Gaiato. Vejo "... uma ERPI (Estrutura Residencial para Pessoas Idosas) e um Lar Residencial (para pessoas com Deficiência)... Baila em mim uma doce inquietação: olhar de novo aquele "uma palavra tirada do Evangelho". Com um olhar sempre novo. Com toda a Força(3) que ISSO implica: impedir que, com as mudanças a fazer - necessárias e urgentes - NÃO, NEM, NUNCA, JAMAIS, EM TEMPO ALGUM, nos deixemos cair na vulgaridade das obras semelhantes... É Pai Américo a falar!

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1 - Continuamos a ser cartesianos - pomos a res divina fora do homem. Dizemos que é um composto de res extensa e de res cogitans... Hoje, felizmente, essa escolástica, já era... Que bom sermos de hoje, sabendo que viemos de ontem e que vamos para um amanhã ainda mais bonito!... É tempo de ser esperança.

2 - Abreviatura de um modelo de Psicologia que me é muito querido - a Análise Transacional.

3 - O Ruah hebreu, que do nada arranca toda a Criação e a sustém.

Um admirador