
BEIRE
Flash's da quinzena!...
1. Adeus, Pe Abraão, e até breve -... O funeral já foi ontem. Hoje, há uma missa em Aveiro, mas eu não posso ir porque... A conversa não era comigo e apanhei-a já no ar. Dei-me conta de que o P.e Abraão tinha partido para a Casa do Pai. Dias antes, alguém me perguntara se P.e Abraão ainda era vivo. Coincidências?! Dizem que "a coincidência é o truque que Deus usa para esconder a Sua assinatura"... Gosto deste jeito de ver o invisível.
Conhecemo-nos em Paço de Sousa. Era o ano de 1960 e a Obra da Rua vivia a febre de levar as Casas do Gaiato até África. Ambos sonhávamos fazer-nos Padres da Rua e ambos queríamos entrar nessa aventura d'África. Ele, bastante mais velho que eu, vinha do mundo do trabalho, para fazer teologia no seminário de Aveiro. Eu, menino e moço, vinha do mundo dos conventos. Vivia encantado com a doação de Pai Américo a desenterrar pedras preciosas perdidas nas crianças da rua, para fazer delas portugueses de lei. Na convicção de que é mais económico prevenir crimes do que suportar criminosos. Em mim, a esperança de que também eu, um dos muitos ninguéns em busca do direito a ser gente, pudesse vir a ser aproveitado para a construção de um Portugal maior, numa Igreja melhor. Sem o saber, experimentava já na pele que o sonho comanda a vida e que pelo sonho é que vamos.
Depois, fui lendo o meu por dentro. Não era por ali o meu caminho. O Abraão ficou e eu saí. Mas cada um de nós cuidou de ir aprendendo a nobre arte de tornar(-se) um afoito aprendiz de construtor do Reino. Esse que é o sonho louco, a grande utopia da humanidade. Um Reino onde ninguém fique de fora. Em que os que ninguém quer são os preferidos do Rei Servidor - tão propalado nos Salmos e exemplarmente revelado por Jesus de Nazaré - o filho do carpinteiro (Mt 13, 55). Encantava-me esse jeito familiar de Pai Américo ver e tratar com esse Jesus que já tanto me seduzia.
Foi já aqui em Beire que soube que P.e Abraão também colaborara na Casa do Gaiato de Malanje. Depois... voltou à sua diocese de origem. E, porque os anos passam e nos roubam as forças da juventude, soube que foi acabar na Casa Sacerdotal de Braga, sua terra natal. - Talvez já há uns vinte anos... Levaram-me lá. Vim embora com a amarga sensação de que já nem se lembrava de mim... Por isso quis voltar. Com todo o tempo do mundo para puxar por ele, a desenterrar nossas doces memórias comuns. Devagarinho, P.e Abraão foi-se-me revelando. Já com noventas e, mas ainda muito P.e Abraão, o nosso querido padre engenhocas, mai-la sua inseparável malinha da ferramenta...
2. Um gemido que não me largou mais... Foi bonito este segundo encontro, mas difícil. A conversa era lenta, tirada a saca rolhas e a rebentar de intermitências. O pessoal de serviço veio interromper, porque está na hora do lanche... Olhávamo-nos em silêncio, com pena de não podermos continuar. E foi então que dele recolhi este doloroso gemido: - É muito triste a gente querer conversar e já nem se lembrar das palavras...
Em Beire, falo desta minha dura experiência. Falo do contraste entre o que vi numa Casa Sacerdotal e o que, aqui no Calvário, todos podemos ver. (Se nos dermos tempo e abertura interior para isso). Digo que até me apetecia irmos a Braga buscar o Pe Abraão e ressuscitá-lo entre nós. De coração agradecido pelo muito que fez pela Obra da Rua. Temos connosco P.e Telmo (já a bater os 95), temos P.e Manuel António (com 86, mas já muito debilitado, a vários níveis), temos P.e Rafael - em convalescença demorada e um testemunho vivo do que vale a força de vontade e o bom humor na recuperação de um acidente. Pe Fernando Fontoura tem aos ombros a missão de erguer um Calvário novo que não desmereça do sonho de Pai Américo / P.e Baptista e se coadune com as exigências da Saúde Pública na modernidade. Sem se afastar em nada do Espírito de Pai Américo. Ele, o impelido pelo Espírito de Deus. O mesmo que quer actuar neste nosso complexo e turbulento aqui e agora, com covi-19 e tudo.
3. Um cantinho para os "domésticos na fé"... O que mais me toca em Pai Américo é a sua incansável busca da sintonia com a realidade social do seu tempo. No respeito pela Lei e na ousadia de um PRO+feta que ausculta o querer de Deus para o Seu povo eleito - os desprotegidos da sorte. Busca, sofre, porque nem sempre encontra logo à primeira. Mas nunca desanima. Como quem sabe que, quando um homem sonha o que Deus quer, a obra nasce para que muitos tenham mais vida (Jo 10,10).
Via doentes saídos do hospital, mas ainda a precisar ajuda. Logo pensou "uma outra modalidade de assistência que o Calvário deseja e se propõe. São os convalescentes..." Não chegou a ver Padres da Rua envelhecidos e doentes, a precisar de amparo... Se os tivesse visto, teria apontado para uma solução. Qualquer coisa como agora estamos nós a tentar. Para que não haja mais gemidos de P.e Abraão... Padres da Rua, Senhoras da Obra, Cooperadores que, por qualquer contratempo, precisassem... É gente nossa. Não vêm tirar a vez a ninguém. Vêm ocupar um lugar que é seu.
Um admirador