BEIRE
Flash's da quinzena!...
1. Um "samaritano" no Calvário... Os mistérios do Calvário assustam-me e encantam-me. Entre "os homens por Deus amados", os mistérios de Deus sempre implicam os mistérios do mal (ou do pecado, no dizer da cultura judaico-cristã (1)) porque não podem separar-se. Precisam viver juntos até que chegue a sua hora... A parábola do trigo e do joio (Mt 13, 24-46) é disso um alerta.
É nesta perspectiva que eu digo que o Calvário me assusta. E me encanta. Me apaixona. Porque me faz SER. Ser Eu, nas minhas circunstâncias. Em mais verdade, mais beleza, mais bondade - a essência de Deus, de Quem quero tornar-me uma boa imagem e semelhança. Porque para isso fui talhado por nascimento.
Quanto mais vou conhecendo (e amando!) este Calvário por dentro e mais me deixo tocar pelo Espírito de Deus (2) que o criou mais me convenço de que esta é mesmo uma obra que Deus quer. Para hoje. Com a mesma urgência de naquele tempo dos princípios da década de 50, séc XX. Se calhar, com mais urgência ainda. Ela chegou até nós veiculada por Pai Américo e logo por Padre Baptista. Sessenta e tantos anos passados, hoje, como então, a sociedade precisa de homens que saibam ler os sinais do tempo e sonhem, para hoje, esse querer de Deus, nestas áreas do serviço social. Que Pai Américo sempre via como áreas privilegiadas da teologia do real (3). Porque é nelas que moram os preferidos de Deus, Rei Servidor dos irmãos que, como José do Egipto, são atirados fora, são rejeitados, são vendidos à desgraça pelos próprios irmãos (Gn 37 e sgts). Ora vejam-me esta cena:
A comida do meio dia foi bacalhau à Gomes de Sá - um pitéu que não acontece todos os dias. Porque pegou um bocadinho no fundo e a cozinheira tem horas de saída e de entrada, o tacho foi deixado a demolhar para, mais tarde, poder ser limpo em condições. Até aqui tudo normal. O certo é que passou por ali a senhora que entra a seguir e a outra que, com funções semelhantes, também passou por ali, e ainda a outra que e que e que. Ninguém mexeu no tacho, porque não é das minhas funções...
Passou o Varito. Esse de que ainda há bem pouco vos falei (ver n.° 1985), com todas as suas deficiências. Passou. Porque é das funções dele recolher a lavagem da copa para os animais - porcos e gatos - e, sempre que necessário, gosta de botar uma mãozinha na banca da loiça. Passou. Viu o tacho por lavar. Não quer saber se é ou não é das suas funções. Agarra e deixa-o um brinquinho!
Apetece-me chamar os senhores inspectores da Judiciária e da Segurança Social que me inspectaram a mim, a quando de... Ouvi a queixa de que "Pe Baptista fala de uma casa de família, mas, para nós, isso não é nada'"... Apetece-me chamá-los. Mostrar-lhes estas realidades e dizer-lhes: - A Família é esta Força (Ruah!) que impele um deficiente - Varito - a "samaritar" um serviço que urge, mas que todos passam à frente... (Lc 10, 25-37).
2. Afinal, o Nando até sabe gadanhar... Já vos falei do Nandinho. Mais que uma vez. As coisas bonitas, aqui no Calvário e Casa do Gaiato de Beire, estão sempre a acontecer. Ele gosta de ser o meu ajudante de campo... Se o não chamo, quando vê que o carro não está por ali, lá vai ele à minha procura. Chega, sorri, diz qualquer coisa como não vi o carro... e lá fica sorrindo, à espera que lhe peça alguma tarefa de que seja capaz. - Olha este capim, Fernando. Assim, a gente quer passar, temos muita dificuldade e as 'esparganas' agarram-se-nos à roupa e ficam a picar. - Co'aquela coisa assim, cotava tudo nun'stante... Pelo gesto, percebi que falava de uma gadanha. - Tu sabes trabalhar com a gadanha?!... Um sorriso de herói molda-lhe o rosto.
Combinamos. A seu tempo, foi buscar e veio mostrar-me tudo à boa maneira dantes; de quando ainda não havia nem tractores nem máquinas de cortar a erva para o gado: gadanha, lima, pedra de afiar o corte, etc., etc., etc. - Se me cortares isto, mereces um chocolatito, daqueles com prata dourada e tudo!... Novo sorriso e, pouco tempo depois, caminho aberto para chegar aos chuchus e kiwis que trepam pelo campo fora e precisam ser guiados.
Saltam-me páginas do Isto é a Casa do Gaiato. A falar de miúdos que vieram de estabelecimentos de assistência.
- Que fazias tu lá ? - Nada! E Pai Américo conclui: "A estrutura daquelas casas é outra. Ali, estão para dar que fazer".
Num de repente, visito cada um dos que nos roubaram. Agora reclusos em gaiolas douradas... "Para dar que fazer" (e que comer!) a quem assim os reclusa...
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1 - A palavra "pecado" sempre me inquietou: Até que curiosou... Isto é, deixou de ser o papão do "por minha tão grande culpa" e passou a ser um desafio a "hoje mais que ontem e menos que amanhã". Tal como no amor. Porque pecar é dizer NÃO ao amor que nos arrasta. Pecar é dar frutos pecos, sem a qualidade exigida para o nosso Crescer(se) como Pessoa - nascida para tornar-se uma glória da criação.
2 - Isto que aqui chamo Espírito de Deus é o mesmo Ruah que, entre os hebreus, se dizia ter sido a Força, o Sopro que do nada fez surgir toda a Criação, do caos fez surgir este UNI+verso que, mesmo tão mal tratado, ainda tanto nos seduz.
3 - "Toda a acção social ou é uma acção teológica ou não é coisa nenhuma..."
Um admirador