BEIRE
Flash's do quinzena!...
Um carrinho de brincar para o Zé-Sem-Nome
Desde há anos que o via. Nunca o ouvi queixar-se por isso. Pachorrento, movimenta-se pesadamente. Por tudo e por nada, solta umas gargalhadas tão castiças que já todos lhas conhecemos como as risadas do Sem-Nome. Assumiu aquela tarefa diária como um ritual sagrado em que se sente a cumprir(-se)1. Todos os dias, àquela hora, era vê-lo avenida acima, carregando o canado do leite. Pousa aqui e pousa ali, certo é que chegava lá cima a botar os bofes pela boca fora. Sempre a sorrir, entregava na cozinha, com um olhito de lado, pronto a mandar a baixo uma lambazita, caso a cozinheira se lembrasse de o brindar com isso... Se me via ou via o carro parado por perto da vacaria, gostava de pedir uma boleia. Se colhia um sim, soltava uma das suas risadas emblemáticas e sempre me dava uma palmadinha nas costas, agradecido... Habitou-se ao sim e, se via o carro, já nem era preciso ver-me. Deixava o canado junto à porta do carro e lá se ia à vida dele.
- Acha que isto aqui pode servir-lhe lá para os seus meninos? Deram para a Conferência (de S. Vicente de Paulo), mas agora não temos ninguém assim com crianças pequenas. Íamos botar fora, mas isto está novo e tive pena de... Olhei bem. Vi que estava mesmo como novo e trouxe comigo. Arrumei para ali durante um tempo. Depois... Chamei o Zé, mostrei-lhe o carrinho, disse que podia servir-lhe para trazer o leite. Fiz demonstrações... Mas ele, rindo, não conseguia ajeitar-se... Foi preciso tempo e paciência até que lhe descobriu o jeito. De experiência em experiência, acabou por gostar e agora já não quer outra coisa.
Hoje o Zé teve de ir ao Hospital, logo de manhã. A caminho da lavra, passei pela avenida. Qual o meu espanto, vejo o Carocha, em passo lento como o Zé, saboreando o sol da manhã, a puxar o carrinho-de-brincar, com o canado em cima... Meti-me com ele, perguntando pela carta de condução para guiar um carro assim ?!... - A polícia não vem cá dentro, respondeu-me ele, todo prazenteiro...
Dei graças pelo carrinho-de-brincar, pelo Sem Nome, pelo Carocha, pela Conferência Vicentina. E, sobretudo, pelo nosso leitinho fresco, em cada manhã. A sair da vaquinha para a nossa mesa. Deixei-me a ruminar os mistérios da parábola do trigo e do joio (Mt 13, 24-30). Ai! o que o joio dos homens fez nestes nossos rapazes! Mas, ai! mais ainda o que de ricas flores de trigo conseguiram, mesmo assim, escapar à malfeitoria do joio ali semeado! Lembrei a bênção de termos tido um P.e Baptista, hoje já a bater os 90 anos. Que Deus no-lo conserve! Apaixonado pelo escândalo da pobreza, com 22 anos, agarrou bem este sonho de Pai Américo. Acreditou. Deus quer, o homem sonha e... a Obra da Rua continua a nascer nesta Casa do Gaiato de Beire. Que responsabilidade a nossa de, nas tempestades do hoje, levarmos a barca a porto seguro! Isto é, sabendo que "é no porto que a barca está segura, mas nenhuma barca se faz para ficar no porto"...
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1 - Gosto desta expressão, que aprendi com o nosso
inesquecível Agostinho da Silva, grande filósofo e apaixonado por gatos... - O
gato encanta, porque sabe deixar-se estar para ali. Simplesmente a cumprir-se.
Cumprir-se como gato! Ai! como tudo seria diferente se cada um de nós (eu à
frente) se cumprir-se naquilo para que está talhado por nascimento!
Um admirador