BEIRE

Do Bonfim até a Malanje...

Rastos de ternura... Eles iam em trabalho. Levaram-me, para ficar a conhecer a tão falada Karianga. Mais que "conhecer" acabei por aclarar (com+TEMPL+ar!...)1 coisas que andavam cá a pedir mais luz - o moinho (ermitério) de P.e Telmo e a mulemba, do livro A Mulemba e o Grão de Areia, ed Alforria, 2014. Senti-me ter olhos a menos para captar tanta beleza e seus mistérios - sempre de dor e amor. Deixei-me "empapar" de todo. Precisava de silêncio para ruminar tamanha fartura. De volta à Casa do Gaiato de Malanje, todo eu pingava, de tão empapado de ternura. Por aquilo que vi e os meus ouvidos iam ouvindo da boca do Adão Vitelo - um gaiato malanjino que, ainda este ano, estudará na U. Católica do Porto. Para fazer teologia. Com votos meus de que não só faça teologia mas, sobretudo, se empape de teologia. Não dessa teologia da treta que, a dançar na cabeça, já baralhou tanta gente. É a teologia do fariseus... Dessa, NÃO mais. SIM, dessa teologia que Jesus de Nazaré, in illo tempore, começou a revelar-nos e que Pai Américo - já Venerável! - tão bem soube seguir de perto. Acabando - um e outro! - por nos encarregar a nós de a levarmos por diante. Recordo, dos evangelhos: - Fareis mais do que eu, porque vireis depois de mim...

Vínhamos de volta. Ali, naquele bocadinho de silêncio / estrada que separa a Karianga da Casa do Gaiato, levantei voo. Fui até ao cemitério do Bonfim: Parei diante da campa da Isaurinha. - Nós somos o rasto de ternura que deixaste... Desde há 30 anos que a placa está ali a dar testemunho. E a responsabilizar-nos por esse bocadinho de vida que dela recebemos. Particularmente nós os 4 que por cá ficamos e ali gravamos o nosso nome.

Do Bonfim, voltei a Malanje / Karianga. Pego n'O Lodo e as Estrelas, 3.a ed. 1985. Centro-me na 2ª parte - Cambambe. Tudo isto são rastos de ternura que espilra ainda desse Coração Grande que passou por aqui. A bater forte, em novos ritmos de amor. No peito de Pai Telmo, como eles ainda hoje gostam de dizer. Um coração que, ao passar, empapou terras, rapazes e famílias que com ele privaram. Dá gosto ver. Ouvir. Até comove tanta ternura por aqui esparramada!

Salta-me Pedro Casaldáliga, o "bispo do povo" - profeta da Amazónia. Ao imaginar-se já diante de Deus e o Seu mostra-me os frutos do teu amor. - Aí, eu abro o peito e mostro a lista de pessoas que amei e por quem fui verdadeiramente amado. Também diante de P.e Telmo, o Supremo Juiz vai ter dificuldade em ver o fim da lista...

Um bolinho atrás da porta... Parece que já tudo dorme. Preparo-me para fazer o mesmo. Ouço bater à porta. Pelo adiantado da hora, adivinho quem ele é. Mai-lo que ele quer: - Sou o... Quero falar consigo... Abro. Olhamo-nos nos olhos. Em silêncio, ambos sorrimos - cada um em seu porquê... - Podia dar-me um chocolatito, sff, para eu dormir bem?!... Sorrimos de novo, em silêncio. Afago-lhe aquela barrigaça que, se não lhe pomos travão, não para de crescer e pode ser-lhe fatal. - É mesmo só um bocadinho, para dormir melhor... Procuro do que sempre nos dão para eles. Encontro uns "ovinhos de codorniz"... Tiro um e dou-lho. Olha o saquito onde o ovo era. - Não pode ser dois?!... - Não, filho, por causa dessa barriguita... O outro fica para amanhã... - Tá bem. - E lá se foi a desembrulhar o ovito, para dormir bem...

Fico a ruminar experiências vivenciadas e teorias aprendidas. Sinto-me dividido. Entre um deve-se-dar e um não-se-deve-dar... Vou oitenta anos atrás. Aquando do nascimento dos meus irmãos gémeos, que se seguiram a mim. Salta-me uma experiência pessoal e uma prática de família em circunstâncias tais. Quando algum dos filhos pequeninos augava2... Era o bolinho atrás da porta. Ali escondido de todos, a convite da mãe, ao lado do forno, quentinho, em dias de cozer o pão...

Hoje entendo assim: A mãe, mesmo dividida entre seus imensos quefazeres, dava-se conta de que um dos filhos andava a precisar de um miminho especial. Só para aquele. Algo que lhe testemunhasse que não andava esquecido. Ela era mãe. Dividida com outros filhos, mas não esquecida d'aquele... Chamava-o. Os dois sabiam que, quando se coze o pão, sempre há um mimito para todos os que passam pela cozinha ao deitar a fornada... Eram os bolinhos de pão quente. Coisa que ficava ainda melhor se a mãe lhes fazia buraquinhos com o dedo e lhes deitava azeite. Um verdadeiro pitéu!... Que um dia também foi só para mim. Em sinal de distinção. A mãe a vigiar e eu a lamber-me todo... Em segredo. Só ela e eu, ali escondido.

1 - Gosto da palavra contemplar. Fala-me dessa Ciência, Técnica e Arte (CTA) de entrar no interior das coisas (nesse TEMPLO "onde Deus habita"...). Aí onde o coração vê mais longe que os olhos... Porque tudo são "coisas" que se podem apreender / aprender, mas ninguém consegue ensinar a ninguém. Fazem parte das DES+cobertas de cada um ao mergulhar no seu próprio interior: Para poder ver-se à luz diáfana da Verdade que nos liberta das cobertas das trevas da nossa ignorância (Jo 8, 31-42). Por isso é que raramente me esqueço de decompor esta palavra e de me / vo-la escrever como o fiz agora: com+TEMPL+ar.

2 - Augar (alteração de aguar) é contrair um conjunto de sintomas de que bem me lembro: palidez da pele, olhos arregalados, cabelo arrepiado, andar meio pasmado, ... Tudo devido à falta de atenção que uma criança precisa para crescer direito. E de que se vê privada pelo nascimento de um irmão, de uma doença da mãe, de um desentendimento familiar. Privada daquilo que precisa como de pão para a boca e/ou de água para beber... Sem ISSO, a vida é um andar par'ali!... Como quem diz, do jeito que sabe: - se viver é isto, antes quero morrer...

Um admirador