BEIRE
… Não podemos deixar estancar a fonte
1. Esperança! A última coisa a morrer... Passo à porta da antiga rouparia. A porta está aberta e eu dou uma espreitadela. Tenho saudades daquelas manhãs de sábado. Voluntários/as de volta dos cestos da roupa para as mudas após o banho. Tudo com o nome da cada um/a. Como Deus manda! Na varanda que liga os dois pavilhões, o que era dos homens seguia para os homens e o que era das mulheres seguia para as mulheres. Às vezes, com a presença e ajuda, ainda pouco calhada, de algum/a aprendiz de voluntário/a. Coisas por que também eu passei. Tenho saudades. Uma saudade habitada por aquela virtude que, na caixa de Pandora, é a última coisa a morrer - a esperança. De que S. Tomás disse que "é a posse actual de um bem futuro".
Oiço um estamos aqui, no meio desta confusão, a ver se... Olho aquele estendal. Toca-me a fé e generosidade de tanta gente que se lembra de nós e, religiosamente, vem até aqui deixar estes (e outros!) pedacinhos de vida. Vidas que, a seu modo, testemunham uma certa fé na vida eterna. Essa que se segue aos cem por um já aqui, até por um simples copo de água (Mt 10, 42).
Digo da falta que nos faz a dona fulana. Semanalmente e, nas férias de dona cicrana, diariamente, lá estava ela a dar uma mãozinha de arrumação e aproveitamento. Sigo para o meu cantinho da meditação. Naquele silêncio e quietude que esta prática diária me proporciona, oiço -pela milionésima vez - um alerta de Pai Américo a gritar dentro de mim: - Não podemos deixar estancar nas almas a fonte de heroísmos que...
2. Também a roupa esconde "heroísmos"... A sabedoria daquela parábola do Trigo e do Joio (Mt 13, 24-30) é inesgotável. Sempre a vou buscar para melhor me/nos entender. Basta recordar Pedrogão Grande, dos incêndios. Todos ficarmos a saber que, muitas vezes, nessas ofertas de roupas usadas, vem apenas o lixo que... É o nosso inconsciente (cego e estúpido...) a tentar mentir a si próprio. A querer pintar de generosidade aquilo que já só é estorvo. Egoísmo puro, a empurrar trabalho para os outros. Mas nem tudo foi assim. Houve muita beleza naquela onda de generosidade que inundou Portugal inteiro. Fenómenos humanos que gosto de reflectir.
Registo com particular intensidade duas experiências do doar as roupas de quem já partiu. São formas de manter viva em nós aquela vida que nos foi roubada...1
A primeira foi há 29 anos, a quando da partida da Isaurinha - a mãe dos meus filhos. Ao arrumar aquilo que fora parte da vida dela (uma vida que deixou em nós tantas marcas de ternura!), sempre nos saía um isto é pena botar fora. Pode ainda ser útil a alguém. E foi assim que, depois de tudo bem limpo e arrumado, junto com as embalagens de fraldas que não chegaram a ser usadas, fui levar ao Calvário. Lembro a emoção com que ali deixei aqueles bocadinhos de vida. Acredito que foram continuar a ser mais vida para mais vidas. Senti-me cumprir uma obrigação. Convencido de que, se as coisas corressem ao contrário, ela faria o mesmo comigo.
A segunda experiência foi um telefonema feito aqui para o Calvário. Por alguém muito ligado ao mundo das terapias de espiritualidade. Conhecemo-nos. Ela sabia do meu estar aqui e chegou a vir cá - para conhecer isto. Com métodos diferentes, muitas vezes até trabalhamos juntos. Objectivos muito semelhantes - tentar ajudar as pessoas a descobrir que todos nascemos para tornar-(se) feliz.
Ela tinha uma cliente, lá para os quintos de S. João da Madeira. Era uma mulher nova a quem a vida levou o marido. Entrou em depressão prolongada. Vivia amarrada ao passado. Parecia não querer mesmo sair dessa. Até as roupas que foram dele lhe serviam de (falsas!) razões de... Não queria separar-se de nada. A terapeuta conseguiu dar-lhe a volta. Ela tinha na família alguém que assinava O GAIATO. Falou-lhe do Calvário. Do nosso jeito de viver e de dar mais vida a tantas vidas. Doar aquilo que fora a vida do marido poderia ser uma forma de lhe dar a ele mais vida - a viver ainda em tantas outras vidas...
Telefonou-me a saber da hipótese de ir lá buscar aquela tanta roupa - 12 sacos, com coisas ainda por estrear... Fui. Lembrei P.e Baptista perdido por esses becos e montes de Portugal. Encontrei a casa. Vi a senhora. Falamos. Carreguei e vim feliz. Com a sensação de que estava a ajudar uma irmã doente, em vias de recuperação.
3. Podemos tirar muitas conclusões... Sim senhor. E a primeira é que URGE MESMO rever os nossos conceitos de voluntariado... Um tema que me escalda por dentro. Com Pai Américo a gritar-me: Não podemos deixar estancar a fonte. Essa que, se bem cuidada, gera em nós gestos de Beleza, de Bondade e de Verdade. "Massa de Deus" de que também somos feitos. Olhem-me só este gesto de heroísmo que acaba de nos chegar: - ... muito me apraz conceder à vossa maravilhosa Obra da Rua, na linha do pensamento e das obras do Divino Mestre, a participação na minha herança através da transferência bancária de 25.000 € (euros vinte e cinco mil)". Silêncio! Deus fala.
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1 - Quanto mais os anos passam por mim mais sinto como NOBRE aquela visão cristã da morte: "A vida não lhes é tirada, mas apenas mudada".
Um Admirador