BEIRE

Sim, mas… Não posso não falar.

1 - Peito pequeno para tanto coração. Era a Festa da Ascensão do Senhor. P.e Fernando, de coração trasmontano, a esbordar uma doce paixãozinha pela Liturgia, aproveita a data e faz acordar memórias que muitos ainda trazemos bem gravadas. Neste dia solene, como que assegurando a protecção de Jesus que subiu ao Céu, depois da Eucaristia, o Povo de Deus organizava-se em Procissão das Rogações - ou da Bênção dos Campos. Nela se recordava o desenrolar de toda a Obra da Criação, relatada no Livro do Génesis, cap 1. Caminhando no meio da natureza, em reverencial procissão, todos eram convidados a um significativo invocar de Todos os Santas e Santas de Deus, para que estejam connosco. No cuidado e amanho desta nossa Mãe-Terra, que nos cria e recria, nos alimenta e dá vida: Deus, Criador do Universo, fazei que nesta nossa Terra, favorecida pela vossa generosidade e cultivada pelo nosso trabalho, se multipliquem os frutos de todas as sementes, a fim de que este vosso povo, saciado com os vossos dons, possa louvar-Vos sem fim.

Ai que oportuno este antiquíssimo Acto Litúrgico, nos dias de hoje! Num período crítico da nossa história, porque já começamos a sentir na pele os efeitos nefastos dos maus tratos a que vimos submetendo esta nossa Casa Comum da Humanidade. Logo no fim da Missa, saímos em solene procissão, seguindo o empedrado que, atravessando a mata de dentro, liga o Calvário à Casa dos Rapazes, onde a quinta é. Procurando a sombra - para cuidado com os doentes e idosos que nos acompanhavam. P.e Manuel António, nosso herói de África, fundador da Casa do Gaiato de Benguela, quis seguir connosco na sua cadeirinha de rodas. Um encanto!

Antes, sentadinho como pede a sua debilitada saúde, com+Celebrou com P.e Fernando e P.e Telmo. Mas, para ir na Procissão, porque as pernas já não lhe permitem mais, pediu a sua cadeirinha e a ajuda do Mário, antigo gaiato de Malanje. Integrado no grupo, como que perdido no meio do povo e de outros doentes, também como ele na sua cadeirinha de rodas, lá seguia o nosso herói, agora em repouso merecido. A esguichar alegria e devoção a esta Bênção dos Campos, a que tantas vezes terá assistido, quando menino e moço, lá pelas terras de Santiago de Bougado, na Trofa, de onde é natural.

Na mata, os passarinhos parecem querer rezar connosco. Os nossos animais domésticos - perus, pavões, galinhas, patos e até as ovelhas - a cada invocação, juntam-se a nós numa comovente melodia de vozes que alguém, muito sabiamente, já classificou como a música de Deus. Uma bênção !!!

2 -Em viagem pelos Caminhos da Luz... Uma outra novidade bonita! A devoção da Via Lucis - o Caminho da Luz. Para quebrar a monotonia que ameaça todos os calvários do mundo. Esta devoção, até eu desconhecia, porque muito recente. Mas estou a gostar imenso. Acaba no último sábado do Tempo Pascal - véspera de Pentecostes. Resumidamente, trata-se de uma Via Sacra1. Não já das Dores da Paixão, mas das Alegrias da Ressurreição. Que bonita ideia! Tal como fizemos na Quaresma, antes da Páscoa, em cada sábado de tarde, percorremos as 14 "estações" da Via Crucis; agora, depois da Páscoa, percorremos também 14 "estações" da Via Lucis - os Caminhos da Glória do Senhor Ressuscitado.

Discretamente, vou observando cada um dos nossos doentes. Uns a pé, amparados por algum cireneu que sempre se prontifica. Outros, no seu carrinho de rodas, a desfrutar da beleza da mata e a saborear a melodia dos cânticos com que o Marco Aurélio e/ou o Luís (solos) vão animando a assembleia. As vozes das Irmãs Franciscanas, que sempre nos acompanham nestas iniciativas, dão mais vida à celebração. O povo da vizinhança vai-se juntando a nós e começa a descobrir que o Calvário existe, o Calvário também é deles e até precisa deles. D'aqueles que vão percebendo que todos nós precisamos muito de quem precisa de nós.

P.e Telmo, outro nosso herói de África (Malanje), mesmo amparadito a algum braço que nunca lhe falta, também está presente. Ao lado de P.e Fernando - que preside. Olho-o. É a PAZ encarnada! E, entre o povo, vai P.e Manuel António. Em sua debilidade, sob o peso de tantos anos de luta. A presença deles, assim, aqui, é um acto de grande coragem e humildade. Com o nosso saudoso P.e Zé Maria, foram eles que levaram até África as Casas do Gaiato. Sofreram os horrores da guerra colonial. Mal a coisa serenou, retomaram a sua nobre missão. Agora, bem merecem este repouso mimado. São eles que encarnam, entre nós, a presença de "Deus que alegra a nossa juventude" (Sl 42,4). Uma juventude de 93 e outra de 85 anos. Mas juventude! Porque o Senhor é de ontem, é de hoje e é de sempre!

Os raios do sol atravessam o espesso do arvoredo e poisam docemente sobre aqueles cabelos brancos. Estendem-se a iluminar um sorriso da Luísa, a nossa princesinha. Toda torcidita na sua cadeira de rodas. Com a língua de fora, por entre a baba que não controla. Arregala os olhos para tudo e meneia a cabeça, como quem não quer perder pitada de tanta novidade. Derreto-me de ternura. Agradecido por este quadro.

3 - A presença dos ausentes... No esplendor desta mata, desta música de Deus que não cessa de nos encantar, desta esfusiante alegria que esguicha do rosto de cada um, não posso não falar. Vejo Aveiro. Vejo Vila da Feira. Viseu. Vila Nova de Gaia e Porto. Diante de mim, um a um, passam os 26 irmãos nossos que, em capas de aparente legalidade, nos foram roubados. Como Pedro, naquele tempo, diante das autoridades, não posso não falar (At 4, 20): Ninguém tem o direito de privar os que são nossos desta Festa de família dos sem família.

1 - Via Sacra! É uma devoção medieval, largamente divulgada pelos Franciscanos, convidando a "percorrer" 14 dos "Passos" / "Estações" da Paixão e Morte de Jesus. Mas a palavra Sacro ou Sagrado sempre significou, ao mesmo tempo, "santo" ou "maldito" (tabú!...). Tal como no grego - puro e manchado. Aqui, pretendemos significar tanto o sagrado / mistério da dor, do sofrimento e da morte a que estamos sujeitos , como o sagrado / mistério da festa, da alegria e da glória a que somos chamados.

Um admirador